terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Cães de guarda, a imprensa burguesa e a ditadura militar 

Resenha do livro de Beatriz Kushnir “Cães de Guarda - Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988” (Editora Boitempo)


AMÉRICO GOMES, DA COMISSÃO DE PRESOS E PERSEGUIDOS POLÍTICOS DA CONVERGÊNCIA SOCIALISTA


• O livro de Beatriz Kushnir, feito a partir da edição de sua tese de doutorado, “Cães de Guarda - Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988” (Editora Boitempo), é um excelente material para quem quer realmente conhecer a imprensa burguesa e suas relações com o poder.


Ela foca seu trabalho nos grandes meios de comunicação nos tempos de ditadura cívico-militar-imperialista, com destaque para o Grupo Folha e o jornal Folha da Tarde, mas serve para entendermos os dias de hoje. Esta, inclusive, é a principal explicação do porque o livro quase não foi divulgado. Até agora, a grande imprensa ignorou este trabalho.

Beatriz Kushnir é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e, atualmente, diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, que possui um dos maiores acervos da imprensa alternativa, particularmente no regime militar. Sua tese foi apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Seu livro fala dos jornalistas de formação que fizeram parte do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP); dos policiais que atuaram como jornalistas e trabalharam na grande impresa; dos grandes meios que “acatavam” os bilhetinhos da repressão sobre o que se podia e o que não se podia publicar; dos “quadros de confiança”, jornalistas colaboracionistas que ficaram conhecidos como “gansos”, que cobriam o Deops e não passavam pela “revista”, seguindo direto pela entrada reservada aos policiais; e o papel totalmene colaboracionista com a ditadura que tiveram os donos dos grandes jornais. “Assim como nem todas as redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de resistência ao arbítrio”, argumenta Beatriz em seu trabalho.
O ponto alto do livro é a sua pesquisa do jornal Folha da Tarde (FT), do Grupo Folha, de Octavio Frias, dos fins de 1967 a 1984. Jornal que prestou grande serviço à repressão. Considerado o jornal mais sórdido do país[2], era também chamado de “delegacia” ou “orgão oficial da OBAN”.
O Jornal de maior tiragem 
Kushnir narra em sua tese a trajetória da Folha da Tarde. Conta que o jornal já teve uma redação de “esquerda”, mas depois foi o reduto, entre fins de 1969 e 1984, de um grupo de jornalistas colaboracionistas, os "cães de guarda". Com alguns deles tendo cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Por isso o jornal ganhou a alcunha de “jornal de maior tiragem" no Brasil, pela grande presença de 'tiras' na redação.
É verdade que praticamente todos os órgãos de imprensa transmitiam a versão do Estado na luta contra a guerrilha, ocultando a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos e as mortes dos oposicionistas. Mas, o caso mais destacado foi, sem duvida nenhuma, foi o da Folha da Tarde.
No livro, encontramos uma declaração de Aton Fon Filho publicada na revista Teoria & Debate que reafirma este caráter do jornal: “a propria Folha da Tarde estava muito submetida à orientação do DOI-CODI, fazendo guerra psicológica e propaganda contra a guerrilha, sem que qualquer ação militar tivesse desenvolvido contra ela. Não que não houvesse vontade de realizá-la. Esta surgia em cada mentira, a cada infâmia, a cada vez que a Folha da Tarde, na condição de porta voz oficioso do DOI-CODI, anunciava como fuga ou morte em combate o que na realidade fora o assassinato de um companheiro”.[3]
O jornal tinha sido entregue a repressão como orgão de propaganda, enquanto papel, tinta e funcionários eram pagos pelo Grupo.[4]Em virtude disso, alguns fatos surpreendentes são relatados no livro como: a pouca importância dada à prisão de Frei Betto, em 11 de novembro de 1969. Surpreende, ainda mais, porque ele havia sido chefe de reportagem deste jornal, e isso nem foi citado. A total omissão da missa ecumênica, realizada na Catedral da Sé alguns dias depois da morte de Vladimir Herzog, assassinado nos porões da OBAN (Operação Bandeirante) em 25 de outubro de 1975. Ou a publicação, em 22 de maio de 1970, sob o título de “Terrorismo é uma farsa, denunciam jovens presos”, do arrependimento de cinco militantes políticos da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), no qual estes reavaliaram sua ação militante. E depois a contratação de dois destes arrependidos pelo jornal: Marcos Vinicius Fernandes dos Santos e Romulo Augusto Romero Fontes.
Mas, a prática mais macabra que se estendeu a outros órgãos de imprensa, e que foi exemplar na FT, foi a de transmitir integralmente a versão do Estado para desaparecimentos e assassinatos de militantes de esquerda que, na verdade, teriam sido mortos sob tortura. Como foi o caso da notícia da morte do guerrilheiro Joaquim Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), acusado de matar o industrial Henning Boilesen (organizador do caixinha da FIESP para manter a OBAN). Ivan Seixas, seu filho, preso com ele, foi levado para um ‘passeio’ pelos policiais e leu, em uma banca de jornal, a notícia da morte do pai, publicada em manchete pela Folha da Tarde. Quando voltou, viu que Joaquim Seixas estava vivo, mas viria a morrer horas depois. A FT anunciou a sua morte, já planejada pela repressão, em uma clara legalização de mortes em tortura.
O mesmo foi feito com Bacuri, o guerrilheiro Eduardo Leite, que segundo depoimento,em juízo, de Vinicius Caldeira Brandt, chegou a ver a primeira página da Folha da Tarde anunciando a sua fuga, antes de ser assassinado.[5]
A Folha e a ditadura
A Folha de São Paulo, de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, era, em 1962, antijanguista e, em 1964, apoiou o golpe militar[6]. Depois passou a ajudar os aparatos de repressão, fornecendo transporte e cobertura.
O coronel Erasmo Dias era amigo íntimo de Carlos Caldeira e frequentava as festas da Folha de São Paulo, almoços com Otavio Frias, pai e filho, juntamente com Dom Paulo de Evaristo Arns (este pedindo melhores condições carcerárias para os presos politicos). O que era normal, já que nos almoços de aniversário do jornal, em 1º de julho, além dos Frias, dos coronéis Lepiane e Erasmo Dias, estavam presentes personagens como o governador Paulo Maluf e os delegados Celso Telles e Romeu Tuma. [7]
Claudio Abramo, que assumiu a secretaria geral da Folha em 1967, foi afastado em 1972 e preso em 1975, acusado de subversão. Em 1976, voltou a Folha e retomou a direção do jornal, sendo novamente afastado em setembro de 1977, supostamente por imposição do general Sylvio Frota, substituído definitivamente por Boris Casoy, mais ao gosto do militares. O motivo seria uma crônica de Lourenço Diaféria que criticava a estátua do Duque de Caxias. A pressão de Frota foi contestada pelo genereal Golbery, pois Frota foi deposto de seu cargo de Ministro dias depois do afastamento de Abramo.“Mas se foi o Frota quem pressionou, por que não chamam o Claudio Abramo de volta a direção do jornal?”, afirmou Golbery.[8]
Com isso,“a Folha de São Paulo, transformara-se em porta voz do governo militar e mesmo cúmplice de algumas ações”, como destaca o livro de Kushnir.[9] Com Boris Casoy são tirados todos os nomes dos Frias do expediente, que só vão ser recolocados no jornal em 1984, na época das “Diretas Já”. De acordo com Beatriz, “uma jogada de marketing da Folha”, pois para a maioria das pessoas que continuam lendo a Folha, o jornal saiu de tudo isso como se nada do que aconteceu tivesse a ver com a família Frias, pretendendo, assim, entrar limpa para a história com a redemocrátização do País. Quando, na verdade, Otavio Frias foi um homem de negócios que prosperou em tempos de ditadura.[10]
No livro, é reproduzido parte do jornal clandestino da ALN, “Venceremos”, que anunciava no editorial “Os que mentem ao povo”, o papel da família Frias: “O presidente do Grupo Folha, proprietário do grupo Gazeta e da estação rodoviária, testa de ferro de inímeros grupos americanos da indústria gráfica, Octavio Frias Oliveira, certificou-se de um fato real: há uma guerra e ele é o inimigo”.[11]
A auto censura como justificativa
Octavio Frias advogou também a tese de que “por uma questão de sobrevivência” o Grupo Folha não deveria ter censores e sim fazer autocensura.
A censura prévia, que muitas vezes era feita em Brasília, como no caso dos jornais alternativos Pasquim e Movimento, visava quebrar o jornal. Pois, com isso, o jornal tinha que ser fechado com antecedência, afastando os anunciantes e deixando as notícias ultrapassadas e, de quebra, afastava os censores dos jornais para não serem influenciados pelos redatores.[12]Por isso, a maioria da grande imprensa resolveu adotar a auto-censura. O professor Bernardo Kucinski, citado no livro, lembra: "A maior parte da grande imprensa brasileira aceitou ou se submeteu a esse pacto. Para Médici, era melhor que o próprio jornalista se autocensurasse". E segue, portanto,“adesão a autocensura e identificação plena do proprietários dos jornais com os objetivos da repressão, e portanto um virtual colaboracinismo”[13]
Outros orgãos de imprensa
Mas, não foi somente a Folha que colaborou com a ditadura. O livro aborda também outros orgãos. Patrocinaram e sustentaram o golpe também: os Diários Associados, de Assis Chauteaubriand; o Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde dos Mesquitas; a Radio Eldorado; a TN Record; a TV Paulista; o Jornal do Brasil; o Correio do Povo; a Tribuna de Imprensa de Carlos Lacerda; o Noticias Populares de Hebert Levy; e as Organizações Globo de Roberto Marinho.[14]
Em compensação, Castelo Branco permitiu e patrocinou a venda das ações das Organizações Globo à corporação americana Time-Life, por 6 milhões de dólares, para a compra de equipamentos (venda considerada ilegal, pois as leis da época vedavam a estrangeiros participação nas empresas brasileiras de comunicação).[15] Segundo Valter Clark, até 1968, a TV Globo não sofreu nenhuma censura e, depois, “Ele (Dias Gomes) escrevia o que queria, eu colocava no ar o que podia. Não iria colocar meu pescoço em holocausto para ele posar de campeão da liberdade. Contratei o ex-diretor do Departamento de Censura da Guanabara (...) para fazer a censura mais rigorosa que fosse possível. Eu preferia decidir o que fosse ou não para o ar do que ouvir os censores do regime”[16]
No livro “A imprensa e o AI-5”, de Jânio de Freitas, destaca-se a participação do JB na ditadura: “Naqueles tempos, e desde 64, o Jornal do Brasil (...) foi um dos grandes propagandistas da politica do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime (...) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói antiditadura tem dependido só de um passar para tal”[17]
Frei Betto critica as notícias de culinária no lugar das matérias censuradas no Jornal da Tarde e no Estado de São Paulo. Para ele, “atenuavam sua cumplicidade com a mentira oficial publicando, nos espaços censurados, receita de bolos ou poemas de Camões. Os acólitos do regime adaptavam-se, substituíam o noticiário cortado, antecipavam-se a tesoura do censor, exercendo sem escrúpulos o aprendizado que faria a escola do jornalismo brasileiro: a autocensura. A insólita lição ensinava que o bom profissional deve alienar-se de suas ideias e convicções para escrever como o patrão escreveria, editar como o governo editaria”[18]
O poder dos meios de comunicação
Beatriz Kushnir incorpora em suas conclusões: “Este quarto pilar, localizado fora do aparelho do Estado, deveria, segunda esta concepção, vigiar os interesses de seus leitores, cidadãos republicanos”.[19]No entanto, Claudio Abramo é mais enfático: “um equívoco que geralmente a esquerda comete é o de que, no Brasil, o Estado desempenha o papel de controlador da informação (...) O Estado não é capaz de exercer o controle, mas sim a classe dominante, os donos. O Estado influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos dos jornais. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o proprio dono do jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos jornalistas ingênuos ficou a impressão que eles e o patrão tinham o mesmo interesse em combater a censura”.[20]
Assim como Mino Carta afirma: “A imprensa no Brasil é sempre parte do poder, é o proprio poder, mesmo quando esta na oposição. Uma eventual divergência com o governante de plantão não abala este pilar do establishment. (Portanto) a contribuição da imprensa para a manutenção do status quo tem sido magnífica, em certas circunstâncias, vital.”[21]
Por isso, não podemos nos surpreender quando estes mesmos meios de comunicação se colocam contra as greves dos trabalhadores hoje, ou divulgam mentiras sobre militantes de esquerda e suas lutas, como as que foram divulgadas na época da desocupação do Pinheirinho. Afinal, são os mesmos jornais que continuam a sutentar o poder, defender os poderosos e manter o regime contra as ações do movimento.
Neste sentido, o livro de Kushnir cumpre um importantíssimo papel ao colocar luz sobre a atuação da grande imprensa durante a ditadura, e serve de base para entendermos como os meios de comunicação trabalham hoje. Afinal, para a burguesia, o “jornalismo é um negocio”, que para ser feito, na maioria das vezes, necessita das benesses do Estado, e por isso tanto o defende.




[2] Claudio Abramo, A regra do jogo, in Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 230
[3], “A publicidade da Folha”, jul/ago/set de 1997, p 78, in Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 273
[4] Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 274
[5] BNM, n 232, vol 3, p 932-3, Arquivo Edgar Leuenroth, in, Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 303
[6] Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 220
[7] Persival de Souza, Autopsia do Medo, in Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 315
[8] Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 224
[9] Freire, Almada e Ponce in Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 273
[10] Bernardo Kucinski, em Sindrome da antena parabolica, p 66 in, Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 229
[11] Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 333
[12] Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988 p 198
[13] A Sindrome da Antena Parabolica p 61
[14] René Armand Dreifus, 1964: A Conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe, p 233
[15] Moniz Bandeira, O governo João Goulart, as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p
362
[16] Walter Clark, O campeão de audiencia (São Paulo, Best seller, 1991) In Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988 p 189
[17] Janio de Freitas, “A imprensa e o AI-5”, Folha de São Paulo 15/12/1998, p 5
[18] Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 228
[19] Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 349
[20] Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p214
[21] Mino Carta, Posfacio em Lins da Silva, Mil dias, in, Beatriz Kushnir, Caes de Guarda, jornalista e censores do AI 5 a constituição de 1988, p 338

No Barão de Itararé: Mídia e Golpismo, Ontem e Hoje (1964-2024)

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