terça-feira, 8 de abril de 2014

É falso sugerir que ditadura foi uma criação apenas dos militares

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Vamos combinar assim: ninguém apoiou a ditadura, talvez nem os militares, e, deste modo, tudo fica muito bem. Todos ficam felizes e o Brasil varonil segue adiante, às vezes deitado em berço esplêndido — isto se o berço não for assaltado. No Bananão, como Ivan Lessa chamava o país de Paulo Maluf e José Sarney, rouba-se até a história. Nos jornais, ao menos em alguns deles, fica-se com a impressão de que (quase) todos combateram o regime civil-militar. Mais: há uma tentativa — solerte, diriam os conservadores — de se retirar o elemento civil e, portanto, a ditadura seria apenas “militar”. Historiadores gabaritados, como Daniel Aarão Reis Filho e Carlos Fico, para citar apenas dois, preferem o uso de golpe civil-militar e ditadura civil-militar. Porque, admitem, o golpe e a ditadura foram civis e militares.[Não é bem assim, para o Daniel é ditadura civil-militar e para o Fico é ditadura militar].
Civis e militares se irmanaram para derrubar o presidente João Goulart e sabiam — ninguém, no meio político, tem o direito de ser ingênuo — que se caminhava para uma ditadura. Um livro clássico, “1964: A Conquista do Estado — Ação Política, Poder e Golpe de Classe” (Vozes, 814 páginas, tradução de Ayeska Branca, Ceres Ribeiro, Else Ribeiro e Glória de Mello), do doutor uruguaio René Armand Dreifuss, documentou, com rigor, a articulação civil e militar, numa conexão irrestrita, para depor Jango. Pode-se dizer, até, que foram os civis que “agenciaram” o golpe que os militares levaram a termo.
A vivandeira-mor Carlos Lacerda, um dos políticos mais nefastos da história brasileira e um golpista nato — porta-voz da “república da citação”, da cultura bacharelesca, filosoficamente inconsistente, quando filtrada —, conspirou abertamente contra a democracia desde o governo do presidente Getúlio Vargas. Lacerda escrevia de olho nos leitores privilegiados dos quartéis, especialmente coronéis e generais, e com o objetivo de derrubar algum presidente constitucionalmente eleito. Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, conspirava contra o governo de Jango até quando dormia e sonhava. Frequentava os quarteis, como vivandeira-banqueiro, sempre pedindo a mesma coisa: a derrubada do presidente da República. Até políticos mais equilibrados, como Bilac Pinto, beiravam os quartéis, adulando militares graduados. Na ponta da língua sempre o mesmo pedido, quase exigência: “Deem-nos um golpe!” Até civis americanos, como o embaixador Lincoln Gordon, comportavam-se como vivandeiras. “Um golpe, por favor!”, pedia Gordon, com o apoio de John Kennedy e, depois, de Lyndon Johnson, o sucessor.
Os militares escutavam e, claro, conspiravam animadamente — casos dos generais Castello Branco, Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, a dita Sorbonne, com o apoio de outros generais, como Luiz Carlos Guedes, Olympio Mourão Filho (o Vaca Fardada) e Odílio Denys. Entretanto, sem as vivandeiras, como Lacerda e Magalhães, teriam tentado o golpe sozinhos? Talvez sim. Talvez não. Mais provável que não. Os civis, como Lacerda, de certa maneira deram consistência e, ao mesmo tempo, justificativa para o golpe de 64. Com sua pena ferina, uma mistura de romantismo, parnasianismo e realismo rastaquera, Lacerda contribuiu para que a sociedade quisesse, apoiasse e aceitasse o golpe. O governador da Guanabara e articulista de jornal — talvez nunca tenha sido jornalista, pois parecia não acreditar na exposição e, sim, na fabricação do fato — tornou a ideia do golpe palatável. Lacerda era, em 1964, uma espécie de oxigênio da classe média moralista e conservadora. Era sua voz histérica e histriônica.
Se Lacerda era o lodo da imprensa, pregando o golpe militar como se fosse uma “obra” de saneamento básico contra a corrupção, alguns jornais, como “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e a “Folha de S. Paulo”, torciam abertamente pela queda de Jango. Torciam é pouco. Pediam, até exigiam, que os militares arrancassem o presidente do Palácio do Planalto. “Basta!” — dizia o poderoso “Correio da Manhã” em editoriais escritos por jornalistas e escritores do naipe de Carlos Heitor Cony Otto Maria Carpeaux. “Fora!” — gritavam outros jornais. Se um psiquiatra examinar os principais jornais patropis, notadamente entre janeiro e abril de 1964, certamente vai diagnosticar certa histeria aguda travestida de crítica. Mas uma histeria, digamos, pragmática.
Uma acadêmica do balacobaco, Beatriz Kushnir, não teve receio algum de expor as entranhas e patranhas da imprensa sob a ditadura. “Cães de Guarda — Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988” (Boitempo Editorial, 408 páginas), escrito pela doutora em história social pela prestigiosa Universidade de Campinas (Unicamp), entrou para o índex de alguns jornais. Não há nenhuma determinação escrita do tipo: “Este livro não pode ser resenhado”. Mas os jornalistas sabem que não é de bom tom nem mesmo dizer que o livro foi escrito e publicado. É um livro para ser esquecido. Sobretudo agora, quando a “Folha de S. Paulo” e “O Globo” garantem que erraram ao apoiar o golpe e a ditadura, não fica bem ler e comentar este livro maldito.
Há um certo folclore quando se trata do comportamento da imprensa na ditadura, há, até, uma memória heróica, muito bem construída, para sugerir que houve uma luta ferrenha contra as ações brutais da ditadura. Não custa lembrar o que o general Ernesto Geisel, o presidente que acabou com a censura e o AI-5, revelou: “Recebi no palácio todos os donos de órgãos de comunicação. Nenhum me pediu o fim da censura”. A imprensa mais apoiou do que combateu a ditadura. A economia do país crescia, “milagrosamente”, e os jornais cresciam junto. Havia, portanto, uma identidade sólida entre a ditadura e os grupos de comunicação. Fica-se com a impressão que, com suas receitas de bolo, o “Estadão” foi uma grande rebelde. Não foi. A rebeldia da “Veja” era menor do que costumam sugerir alguns de seus ex-editores. “O Globo” e a Rede Globo de Televisão eram quase porta-vozes do regime.
O grupo Folha da Manhã apoiava a ditadura com seus dois jornais, a “Folha de S. Paulo” e a “Folha da Tarde”. A “Folha de S. Paulo” parece dividir sua história em a.d. e d.d., ou seja, antes da Diretas Já e depois das Diretas Já, esquecendo, não inteiramente, parte de seus passado pouco lisonjeiro. A “Folha da Tarde”, durante certo momento, teve sua redação controlada por jornalistas-policiais ou policiais-jornalistas. Chegaram a chamá-la de “Diário Oficial da Oban”. A “FT” publicava reportagens distorcidas sobre as mortes de militantes da esquerda.
O leitor por certo lembra-se do bordão “Vai que é sua, Taffarel!”, do locutor esportivo Galvão Bueno. Sobre a ditadura, pode-se dizer que os civis estão querendo passar a bola exclusivamente para os militares — “Pega que é sua, general!” Mas a ditadura patropi foi mesmo civil-militar, num colaboracionismo que durou 21 anos. O planejamento econômico (além da política fazendária) foi todo elaborado por “gênios” civis como Roberto Campos, Delfim Netto e Mario Henrique Simonsen. Nesse campo, o trio pintava e bordava. O arcabouço institucional — a elaboração jurídica — formulado pelo governo foi criado e implementado por civis, não raro contidos pelos militares, que avaliavam seus projetos como excessivamente reacionários. Aos poucos, estudiosos sérios, como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis Filho, Denise Rollemberg, Elio Gaspari, Jorge Ferreira, Marco Antônio Villa,[não colocaria este autor neste grupo] vão mostrando o imbricamento visceral entre civis e militares tanto no golpe de 64 quanto na ditadura.

Se os acadêmicos começam a mostrar como os civis foram influentes na ditadura, e não com o objetivo de retirar o caráter militar do regime, e sim de ampliar o entendimento de como funcionava, há os que preferem reforçar o aspecto militarista da ditadura com o objetivo óbvio de piorar sua imagem. “Arrancar” os civis, posicionando a ditadura quase que exclusivamente como militar, é uma forma de sugerir que foi mais cruenta. Acadêmicos, como Denise Rollemberg, Daniel Aarão Reis e Marco Antônio Villa,[não colocaria este autor neste grupo] começam a mostrar que o projeto da esquerda, de parte dela, nada tinha de democrático. Direita e esquerda irmanavam-se: as duas queriam o golpe, de diferentes modos, mas nenhuma era de fato democrática. Elas “namoravam” a ditadura.
A ditadura, se depender de certos nichos, alguns encastelados nos jornais, vai se tornar cada vez mais militar e menos civil-militar. Trata-se de uma contrafação. O golpe e a ditadura são tanto dos civis quanto dos militares. 

domingo, 6 de abril de 2014

Revista Forum Semanal - DITADURA MILITAR: A GRANDE IMPRENSA NÃO AFRONTOU

Para historiadora, a censura foi aceita pelos grandes jornais no pós-64, que mantinham policiais nas redações para que tudo ficasse sob controle

Por Anna Beatriz Anjos
caes de guarda
Lançado em 2004, ‘Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988′ foi a tese de doutorado da historiadora Beatriz Kushnir (Foto: Divulgação)









Na semana em que o golpe de 1964 completou seus 50 anos, a historiadora e diretora-geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Beatriz Kushnir, alerta: não houve drásticas mudanças quando o assunto é mídia tradicional.
“Como os jornalistas que estavam nas redações nos anos 60 continuam trabalhando, há uma tendência de se autoconstruir uma história para si diferente dos fatos que aconteceram. Ou seja, os grandes jornais continuam fazendo a mesma coisa que faziam durante a ditadura: contar uma verdade a seu favor que não estava em sincronia com o que aconteceu naquele momento”, explica.
Kushnir é especialista na questão. Em 2001, obteve o título de doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a tese Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. No trabalho, ela destrincha a relação entre censores do regime militar e jornalistas nas redações dos principais jornais do país, em especial, nos do grupo Folha da Manhã. Em 2004, a tese foi lançada como livro (Editora Boitempo).
Para a pesquisadora, a presença de policiais a serviço da ditadura no ambiente de trabalho dos chamados “jornalões” configura mais do que autocensura. “Era uma colaboração. Era noticiado o que acontecia dentro do aparelho de Estado, dentro do aparelho de tortura. O jornal era feito, de alguma maneira, para que o público identificasse as ações de repressão não como tais, mas como assassinatos em trocas de tiros, por fuga, e não assassinatos cometidos no porão da ditadura”, analisa.
Fórum – Em sua tese de doutorado, você analisa a relação entre os jornais do grupo Folha da Manhã e os militares, desde a instituição do AI-5 até a elaboração da Constituição de 1988. Quais são os principais pontos e particularidades dessa “parceria”?
Beatriz Kushnir - Os focos de análise se confluem em dois cenários e no diálogo que eles estabeleceram. Busquei arrolar, por um lado, os jornalistas de formação e atuação que trocaram as redações pela burocracia e fizeram parte, como técnicos de Censura, do DCDP [Divisão de Censura de Diversões Públicas] – órgão vinculado ao Departamento de Polícia Federal e subordinado ao Ministério da Justiça. Por outro, os policiais de carreira que atuaram como jornalistas, colaborando com o sistema repressivo e censor do pós-1964.
Para encontrar exemplos dessa trajetória, redesenhou-se o percurso do jornal Folha da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984. Analiso a trajetória do jornal Folha da Tarde nos seus dois períodos: do retorno da circulação, em 1967, até o AI-5, e quando se torna um instrumento de apoio e propaganda do Estado autoritário. A reflexão, que intitulei “O jornal de maior tiragem: a trajetória da Folha da Tarde. Dos jornalistas aos policiais”, foi dividida em duas partes para contemplar esses diferentes instantes. Na seção sobre os jornalistas, investigo a redação que lá se encontrava em 1967, vinculada à cobertura dos movimentos políticos da época, da qual faziam parte militantes de esquerda – de simpatizantes a engajados. No item sobre os policiais, o foco é a mudança de contorno e de conteúdo dos que lá passaram a trabalhar.
Fórum – Qual era a relação entre jornalistas e censores? As duas funções se misturavam?
Kushnir - É necessário mencionar que cheguei à história da Folha da Tarde por um acaso. Na realidade, buscava uma entrevista com o delegado Romeu Tuma – que, ao ser convidado pelo presidente José Sarney [1985-90] para assumir a direção do DPF, rompeu a tradição de militares ocuparem o cargo máximo dessa instituição. Para tentar chegar ao delegado Tuma, contatei o seu assessor de imprensa, em São Paulo, mas não conseguia agendar um encontro. Ao entrevistar o jornalista Boris Casoy para compreender os reflexos da censura na redação da Folha de S.Paulo, mencionei a dificuldade de localizar o então senador da República Romeu Tuma. Casoy me explicou o significado da frase “o jornal de maior tiragem”. A expressão se deve ao fato de que  que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir deste perfil de funcionários, a Folha da Tarde carrega a acusação de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como o Diário Oficial da Oban.
O espanto da revelação guiou a investigação. Se existiram censores ex-jornalistas, também houve “tiras” escrevendo em jornal. Esse é um estudo, portanto, que toca na questão da ética, mas centra-se na prática de um ofício, nas regras a serem seguidas e, sobretudo, nos seus momentos de rompimento da prática e da conduta.
Beatriz Kushnir analisou, principalmente, o caso dos jornais do grupo Folha da Manhã, como a Folha da Tarde e a Folha de São Paulo (Foto: Portal do governo do Rio de Janeiro)
Beatriz Kushnir analisou, principalmente, o caso dos jornais do grupo Folha da Manhã, como a ‘Folha da Tarde’ e a ‘Folha de S.Paulo’ (Foto: Portal do Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro)
Fórum – Além da ‘Folha’, quais outros veículos jornalísticos prestaram apoio direto à ditadura? Este apoio se dava mais ou menos da mesma forma? 
As tonalidades da colaboração são as mais diversas.  No Jornal do Brasil, por exemplo, o diretor José Sette Câmara enviou, em 29 de dezembro de 1969, para o editor-chefe Alberto Dines, uma circular de 5 páginas denominada “Instruções para o controle de qualidade e problemas políticos”, criada com o objetivo de “instituir na equipe um (…) Controle de Qualidade (…) sob o ponto de vista político”. Escrita dias antes do Decreto-Lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que legalizou a censura prévia, e um ano após o AI-5, dizia, entre outras coisas, que “O JB teve uma parte importante na Revolução [sic] de 1964 e continua fiel ao ideário que então pregou. Se alguém mudou foram os líderes da Revolução. [Nesse sentido, o JB deverá] sempre optar pela suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal. Para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver”.
Em meados da década de 1970, foi a vez da Rede Globo, que era e é uma concessão pública, formalmente instituir o “Padrão Globo de Qualidade”, ao contratar José Leite Ottati, ex-funcionário do Departamento de Polícia Federal, para realizar a censura interna e evitar prejuízos por conta da proibição de telenovelas. Segundo Walter Clark, a primeira interdição da censura na Globo ocorreu em 1976, na novela Despedida de casado. Para blindar a emissora, o “Padrão Globo de Qualidade” receberia o auxílio de pesquisas de opinião.
Organizada a autocensura, esse “Padrão Globo de Qualidade”  contou com outros ingredientes para o seu sucesso. Em sintonia com a imagem, divulgada pelo governo autoritário, de um “Brasil Grande”, formulou-se também uma “assessoria militar” ou uma “assessoria especial” composta por Edgardo Manoel Ericsen e pelo coronel Paiva Chaves. Segundo Clark, “ambos foram contratados com a função de fazer a ponte entre a emissora e o regime. Tinham boas relações e podiam quebrar os galhos, quando surgissem problemas na área de segurança”.
Esquema semelhante a este foi adotado pela Editora Abril, exposto em uma correspondência de Waldemar de Souza – funcionário da Abril e conhecido como “professor” –, a Edgardo de Silvio Faria, advogado do grupo, na qual comunicava o contato tanto com o chefe do Serviço de Censura em São Paulo – o censor de carreira e jornalista José Vieira Madeira –, como com o diretor do DCDP, Rogério Nunes, para facilitar a aprovação das revistas e a chegada às bancas sem cortes.
Os vínculos de Waldemar de Souza com membros do governo militar são anteriores a esse período. Em novembro de 1971, o relações-públicas do DPF, João Madeira – irmão de José Vieira Madeira – enviou uma carta ao diretor-geral da Editora Abril, na qual ratificava o convite do general Nilo Caneppa, na época diretor do DPF, a  Souza para que fosse a Brasília ministrar um curso especial aos censores. Em maio de 1972, o próprio general Caneppa enviou a Vitor Civita, diretor-geral da Abril, uma correspondência de agradecimento pelas palestras sobre censura de filmes que Souza havia realizado na Academia Nacional de Polícia. Para continuar colaborando, no ano seguinte, Souza formulou uma brochura intitulada “Segurança Nacional: o que os cineastas franceses esquerdistas já realizaram em países da América do Sul e pretendem repetir aqui no Brasil”.
Para Kushnir, imprensa tradicional aceitou a tortura e colaborou com o regime por interesses mercadológicos (Ilustração: Carlos Latuff)
Para Kushnir, imprensa tradicional aceitou a tortura e colaborou com o regime por interesses mercadológicos (Ilustração: Carlos Latuff)
Fórum – Houve algum exemplo de resistência ao regime na grande mídia?
Kushnir – Alguns ícones de resistência são  a meteorologia para o 14 de dezembro de 1968, no Jornal do Brasil [o texto publicado não correspondia ao dia ensolarado - "Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”]; as receitas de bolo do Jornal da Tarde; os poemas de Camões no Estadão; os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos etc., que definiriam a grande imprensa brasileira como resistente ao golpe e, posteriormente, ao arbítrio. Mesmo com todo este esforço, o processo ditatorial perdurou por mais de duas décadas.
Fórum – Qual era o perfil do leitor dos jornais que faziam parte do conglomerado Folha da Manhã?
Kushnir – Folha da Tarde, entre 1967, quando renasce, até as vésperas da morte do [Carlos] Marighella [em 1969], é feita para concorrer com o Jornal da Tarde do Estadão. Feito para um leitor que vai ler sobre as passeatas e os movimentos de esquerda. Posteriormente, se volta para um outro tipo de público, que aprecia essa leitura mais policialesca, como se fosse um jornal sangrento.
Fórum – O leitor se dava conta do processo de autocensura a que o próprio jornal se submetia, por conta dos militares que faziam parte de seu quadro de funcionários?
Kushnir - Ali acontecia mais do que autocensura, era uma colaboração. Era noticiado o que acontecia dentro do aparelho de Estado, dentro do aparelho de tortura. O jornal era feito, de alguma maneira, para que o público identificasse as ações de repressão não como tais, mas como assassinatos por troca de tiro, por fuga, e não assassinatos cometidos no porão da ditadura.
Fórum – O público acreditava nessa imagem construída, sem contestá-la?
Kushnir - Provavelmente, porque o que já havia ali é uma legalização das mortes.
Fórum – À época, o que ocorreu com os jornalistas de esquerda?
Kushnir - Os processos sofridos pelos jornalistas, nessa época, se devem mais à sua militância política do que a ações enquanto jornalistas. O que ocorre nos jornais brasileiros, desde sempre, são limpezas. Claudio Abramo [que trabalhou como jornalista na 'Folha de São Paulo' durante a ditadura] vai dizer que os donos dos jornais cortavam jornalistas fortes. Ficou forte, eles mandam embora. Existiam essas limpezas, desde 64, até meados dos anos 80, e são delas que se forma o que chamamos de imprensa alternativa, ou imprensa nanica.
Esta, por sua vez, tem várias nuances e tonalidades. Compreende desde publicações como O Pasquim - se contesta se ele era realmente uma imprensa alternativa -  até outras como O BondinhoO Lampião da EsquinaMovimento. Esses jornalistas, banidos dos grandes meios, vão trabalhar ali.
A primeira geração toda da Folha da Tarde cai, é presa, nas vésperas do assassinato do Marighella. Essas pessoas ou ficam presas por alguns anos, ou, quando saem, vão trabalhar em outro lugar, mas não mais na imprensa tradicional. Exemplos são Jorge de Miranda Jordão, a quem o Frei Betto dedicou Batismo de Sangue, o próprio Betto e uma série de outros que entrevistei para o livro.
Exemplar nº 300 do Pasquim, publicado em 1975 sem censura. A edição com o artigo de Millôr Fernandes: "Sem censura não quer dizer com liberdade". O Pasquim é um dos símbolos da imprensa alternativa durante a ditadura (Foto: Portal do Governo do Rio de Janeiro)
Exemplar nº 300 do Pasquim, publicado em 1975 sem censura. A edição com o artigo de Millôr Fernandes: “Sem censura não quer dizer com liberdade”. ‘O Pasquim’ é um dos símbolos da imprensa alternativa durante a ditadura (Foto: Portal do Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro)
Fórum – Nessa semana em que o golpe completa seu cinquentenário, como você analisa a situação da imprensa brasileira? Há resquícios do tempo de ditadura?
Kushnir – No Brasil, autocensura na imprensa não é recente. Ela não se iniciou no pós-1964. Vem com a Real Mesa Censória, na Colônia, e perdurou pelos nossos 513 anos. Mesmo nos raros momentos democráticos da República brasileira, o departamento de censura continua existindo, travestido na ideia da moral e dos bons costumes.
O que há de se sublinhar nesses 50 anos do golpe é que, como os jornalistas que estavam nas redações nos anos 60 continuam trabalhando, há uma tendência de se autoconstruir uma história para si diferente dos fatos que aconteceram. Ou seja, os grandes jornais continuam fazendo a mesma coisa que faziam durante a ditadura: contar uma verdade a seu favor que não estava em sincronia com o que aconteceu naquele momento. O que a historiografia tem feito, nos últimos 20 anos, e principalmente a historiografia que tem trabalho com a imprensa, é desmontar essa imagem, demonstrando que é uma imagem construída.
Como diz Jânio de Freitas, em artigo de 1998, sobre os 30 anos do AI-5, o arquivos, hoje, possuem um manancial maravilhoso. Se você voltar aos arquivos e pesquisar o que aquelas pessoas publicaram àquela época, e o que elas dizem hoje sobre o que publicaram àquela época, há uma sincronia.
Um exemplo disso é a Folha chamar a ditadura de “ditabranda”, ou fazer um editorial, no último domingo[30 de março], que nada diz. Ou, ainda, no domingo anterior, publicar um caderno sobre os 50 anos do golpe no qual o jornalista que escreveu sobre a imprensa faz uma narrativa extremamente chapa-branca.
Capa da Folha de São Paulo, de 2 de abril de 1964, comemorava a deposição de Jango (Foto: Reprodução)
Capa da ‘Folha de S. Paulo’ do dia 2 de abril de 1964 comemorava a deposição de Jango (Foto: Reprodução)
Fórum – Até agora, qual a melhor cobertura que viu sobre os 50 anos do golpe?
Kushnir - Para mim, é a do caderno de O Dia. Estão cumprindo um papel muito bacana. Estão puxando os fantasmas, dando nome aos bois. É uma imprensa popular, ou seja, é um público popular que lê aquilo, e tem a chance de ler, de uma maneira crítica, o que está acontecendo.
O público do Estadão, da Folha, do JB Online, de O Globo é muito específico, uma classe média. O público de O Dia é outro. O Dia se preocupar em fazer um caderno sobre os 50 anos do golpe dessa qualidade demonstra um respeito interessantíssimo às classes populares.
Fórum – Qual a sua opinião sobre a cobertura da mídia tradicional sobre o golpe, denunciando todos os horrores da ditadura, sendo que eles mesmos apoiaram tudo isso na época?
Kushnir  - É muito curioso. Essa semana, o UOL [de propriedade do grupo Folha] lançou um aplicativo com as capas dos 12 principais jornais no dia 31 de março. Era algo meio assim: “olha, a gente fez, mas todo mundo também fez”. Vimos bonitas reportagens, mas não houve uma reflexão crítica sobre o momento.
(Crédito da ilustração de capa: Carlos Latuff)

terça-feira, 1 de abril de 2014

Programa Sem Censura - 50 anos do Golpe Militar no Brasil

Exibido em 31/3/2014
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Leda Nagle conversa com historiadores e especialistas sobre o assunto
No dia 31 de março de 1964, o Brasil ficou sem saber o que aconteceria no dia seguinte. O golpe militar pegou todo mundo de surpresa e criou uma sensação de insegurança na população. O regime militar durou mais de 20 anos e foi marcado pela forte censura.
Sem Censura desta segunda-feira recebe estudiosos da história do Brasil e pessoas que conviveram com a ditadura militar.
Leda Nagle recebe os historiadores Beatriz Kushnir e Daniel Aarão Reis, que falam sobre os 50 anos do golpe militar; a atriz Bete Mendes, lembra a época do regime militar; o advogadoJoão Carlos Muller Chaves, relembra a negociação para liberar músicas com os censores; e a jornalista Ana Maria Bahiana, que está lançando o livro "Almanaque 1964".

A influência da mídia no período da ditadura

Ver TV debate o papel da TV no golpe de 64 - Exibido dia 28/3/2014

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                                  Em 1964, a democracia brasileira foi interrompida por um golpe de estado que contou com o apoio quase total da mídia. Após a derrubada do governo de João Goulart e com o estabelecimento da ditadura, censores passaram a controlar o que era noticiado na imprensa e a censurar programas de entretenimento. O Ver TV desta semana discute o papel da televisão no golpe de 64 e sua atuação durante os vinte e um anos de ditadura.
Participam do programa a historiadora Beatriz Kushnir, diretora geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e autora do livro Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 88, que mostra a ação da censura, as motivações, os temas censurados e a pressão de segmentos da sociedade contra a censura; o jornalista Álvaro de Moya, ex-diretor da TV Excelsior, emissora fechada pelo governo durante o regime militar; e a professora de Sociologia da UNESP Anita Simis, autora do livro Estado e Cinema no Brasil, um estudo dos filmes produzidos e exibidos no cinema e na televisão durante a ditadura.
“A televisão é uma concessão pública e por isso a necessidade de que ela andasse muito alinhada com o governo, porque, caso contrário, a concessão seria retirada”, analisa Beatriz Kushnir.
Álvaro de Moya lembra da perseguição aos veículos que se opuseram à linha editorial do governo. “O golpe militar acabou com a TV Excelsior e acabou com um grande capitalista brasileiro, Wallace Simonsen. Ele era a favor da democracia, ele era a favor do presidente da república ser democraticamente eleito.”
Para Anita Simis “os meios de comunicação são meios-chave em qualquer tentativa de mudança ou alternância no poder... Aqueles que querem dar um golpe tentam controlar a mídia”, afirma.



No Barão de Itararé: Mídia e Golpismo, Ontem e Hoje (1964-2024)

  Car@s; Deixo um debate muito bacana que participei.  Para assistir, click na imagem.