quinta-feira, 23 de abril de 2009

A estreita união entre imprensa e ditadura

Portal Vermelho
22 DE ABRIL DE 2009 - 17h29


Beatriz Kushnir: O conjunto da grande mídia ignorou o lançamento de Cães de Guarda — Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo Editorial, 2004). Não era para menos. O livro da historiadora Beatriz Kushnir tocava num dos pontos mais nebulosos da história do Brasil — a relação colaboracionista entre a imprensa e o regime militar (1964-1985). Em entrevista por e-mail ao Vermelho, Beatriz conta a gênese e as descobertas de Cães de Guarda, com destaque para o engajado apoio da Folha da Tarde à ditadura.

Por André Cintra


Beatriz: ''Conexões permissivas''

Vermelho: A Boitempo encaminhou Cães de Guarda a muitos jornalistas que solicitaram exemplares — inclusive profissionais da Folha de S.Paulo. Quase nada, porém, foi publicado sobre o livro. A que você atribui tamanho veto?
BK: Os jornais são empresas de comunicação — estruturas privadas que vendem um bem público: a notícia. Mas nelas só sai o que o dono quer, como dizia o jornalista Cláudio Abramo.

Vemelho: Sobre o tema da censura à imprensa durante o regime militar, já existem dezenas de trabalhos acadêmicos que viraram livros. O que Cães de Guarda acrescenta a esses estudos? Quais foram as principais descobertas e conclusões de sua pesquisa?
BK: O diferencial é que o livro trabalha com uma documentação interna. Localizei o acervo do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), bem como o material da Academia Nacional de Polícia, que treinava os censores. O estudo focaliza a relação dos jornalistas com os censores no Brasil, durante a República e em especial de 1968 a 1988.
Busca-se demonstrar a existência de jornalistas que foram censores federais — e que também foram policiais enquanto jornalistas nas redações. Escrevendo nos jornais, ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso, colaboraram com o sistema autoritário daquele período. Assim como nem todas as redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de resistência ao arbítrio.
Recuo a março de 64 e à legislação censória no período republicano, como por vezes retorno ao início do século 20, demonstrando mais continuidades do que rupturas nesta relação. Centrei a reflexão nos jornalistas de formação e atuação, que trocaram as redações pela burocracia e fizeram parte do DCDP, órgão subordinado ao Ministério da Justiça, cargo de Técnicos de Censura.

Vermelho: Há uma diferença nada desprezível entre apoiar um regime ditatorial e colaborar com ele. Ciente disso, você afirma que a maioria da grande imprensa não só apoiou (o que é público e notório) como também colaborou (o que, por sua vez, não é tão disseminado). De que forma se deu esse vínculo?
BK: Se muitos dos censores eram jornalistas, em uma parte da grande imprensa, no período pós-1968, havia jornalistas que eram policiais. Neste sentido, trata-se de mapear uma experiência de colaboracionismo de uma parcela da imprensa com os órgãos de repressão no pós-AI-5. Tem-se como mote a atuação de alguns setores das comunicações do país e suas estreitas (permissivas) conexões com a ditadura civil-militar do pós-1964.
Além de não fazer frente ao regime e às suas formas violentas de ação, parte da imprensa também apoiou a barbárie. Utilizo esse termo, colaboracionismo, porque compreendo as atitudes tomadas como algo mais que uma adesão aos pressupostos do pós-1964 e principalmente do pós-1968. Além de apoio, também é compromisso — por isso colaborar tornou-se mais acertado do que aderir. Não dá para se eximir. Quem tem mais culpa? É o dono do jornal, é o jornalista? São circunstâncias que se dialogam.
Não estou dizendo que todo jornalista exerceu um papel de colaboração, nem que todas as empresas de jornalismo foram colaboracionistas. Analisei o caso específico de um grande jornal, mas você pode estender para outros casos. Esse termo do colaboracionismo é um termo que dói de ouvir. Isso reflete muito do país, da formação, dos processos econômicos.

Vermelho: Pelos seus cálculos, o Brasil chegou a ter, no máximo, 220 censores — que se ocupavam de fiscalizar a imprensa, as artes, a publicidade, etc. no país inteiro. É pouca gente para tanto trabalho, e uma das soluções da ditadura foi a autocensura. Como esse expediente vigorou durante o regime militar?
BK: Houve jornais que declaradamente optaram por uma posição cínica, defendendo, em 1976, uma “censura inteligente” — feita por pessoal mais bem preparado política e intelectualmente. Constatei, na prática, que os jornais optaram preferencialmente pela autocensura ao encampar as notas da Polícia Federal transmitidas pelo Serviço de Informação do Gabinete (Sibag), vinculado ao gabinete do ministro da Justiça, mas sem registro no organograma dos órgãos federais — portanto, clandestino. A alternativa era a censura prévia.
Os censores estiveram nas redações para cortar os “excessos” em poucos periódicos — O Estado de S. Paulo, Tribuna da Imprensa, O Pasquim, O São Paulo, Opinião, Movimento e Veja. O governo do general Ernesto Geisel, com a promessa de abertura, ainda que “lenta, gradual e segura”, não deixou de estabelecer os parâmetros do que considerava permitido — mesmo que nos bastidores os ministros Golbery do Couto e Silva, da Casa Civil, e Armando Falcão, da Justiça, mantivessem diálogos com jornalistas anunciando a retirada da censura das redações. As notas proibitivas continuaram a ser transmitidas até fins de 1977.
Nos primeiros dias de abril de 1975, o número 300 de O Pasquim trazia o editorial intitulado “Sem censura”, escrito por Millôr Fernandes, notificando ao leitor que desde 24 de março o tablóide se encontrava livre da censura prévia. Depois de um telefonema do Dr. Romão, o último dos quase 30 censores que o jornal teve em cinco anos, estava decretado que a responsabilidade passava a ser da redação.
Para Millôr, a responsabilidade pelo texto impresso que chega às bancas, objurgado ou não, rasurado à caneta vermelha pelo dono do tablóide ou pelo censor do Estado, era sempre da equipe de redação. Por isso o chargista termina o editorial afirmando que ''sem censura não quer dizer com liberdade''. No desenrolar dos acontecimentos, o exemplar de número 300 foi apreendido nas bancas por determinação da Censura Federal — e Millôr Fernandes deixou O Pasquim.

Vermelho: Dá para dizer que boa parte da sociedade apoiava a censura?
BK: Ao se mostrar a censura por dentro, também se tem uma nova série de casos que seriam divertidos se não revelassem uma realidade sombria. Por exemplo, a aparição de um certo Movimento Auxiliar de Recuperação da Juventude Brasileira, que enviou ao Ministério da Educação, em 1972, um apelo para enrijecer a censura. O ministério, por meio de sua Divisão de Segurança e Informações, fez questão de notificar o Serviço de Censura de Diversões Públicas das propostas do grupo.
Ou ainda de um abaixo-assinado enviado em 1970 ao Ministério da Justiça cobrando “medidas governamentais contra o abuso de piadas de mau gosto que estariam sendo feitas sobre portugueses em programas de rádio e televisão”. O secretário particular do ministro da Justiça expediu o abaixo-assinado ao Serviço de Censura — cujo chefe reagiu com a proposta de que seus subordinados vetassem qualquer programa que apresentasse esse risco.

Vermelho: O episódio da “ditabranda” — que expôs o Grupo Folha a um desgaste histórico — ajudou a desmascarar o apoio logístico da empresa à ditadura, especialmente à Oban (Operação Bandeirantes). Dois capítulos de Cães de Guarda tratam do caso Folha da Tarde, que foi chamado até de “Diário Oficial da Oban”. Você poderia resumir como o FT foi entregue às mãos do regime?
BK: A trajetória da Folha da Tarde espelha tanto as rupturas e mudanças no panorama brasileiro, como ainda os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da Manhã para se adaptar aos percalços e à efervescência política daquele período, perdendo poucos anéis, mas jamais os dedos. O corpo de redação da Folha da Tarde, de 1967 a 1984, é formado por dois grupos distintos: os de antes e os de depois do AI-5.
Nas manchetes da Folha da Tarde de 1968, o tom é quase sempre político. Em abril, trazem as torturas sofridas durante oito dias, no Rio, por dois irmãos e cineastas durante a missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, morto no mês de março em um conflito com a Polícia Militar no restaurante estudantil Calabouço, no Rio. Em 2 de outubro, em letras garrafais, o jornal diz: “Conheça Vladimir, ele quer o poder”. No prédio da Alameda Barão de Limeira, a Folha da Tarde ainda noticiou, no dia 13 de dezembro, a libertação de José Dirceu e a transferência de outros estudantes, presos no Congresso da UNE, em Ibiúna, São Paulo, para outras unidades militares e do Dops em todo o país.
Com a decretação do AI-5, muitos proprietários de empresas de jornal criam alternativas para se adaptarem aos “novos tempos”. Na mesma semana que o regime autoritário endureceu, em vários órgãos de imprensa os jornalistas mais combativos foram demitidos. Alguns jornalistas da Folha da Tarde eram simpatizantes da militância armada de esquerda, abrigando reuniões em suas casas, hospedando pessoas ou participando da rede de apoio.
A partir de julho de 1969, com o fim da equipe de redação formada a partir de outubro de 1967, o jornal, torna-se, nas palavras de Cláudio Abramo, sórdido. O papel desempenhado pelo grupo Folha da Manhã durante os anos de 1970 recebe muitas críticas. Acusam-se o jornal e a empresa de algo extremamente sério: de terem sido entregues à repressão como órgãos de propaganda, enquanto papel, tinta e funcionários eram pagos pelo grupo.
Encontrei muitos depoimentos que se auto-atribuíam a criação da célebre frase que definiu a Folha da Tarde a partir de julho de 1969. O jornal era tido como ''o de maior tiragem'', devido ao grande número de policiais que compunham sua redação no pós-AI-5. Muitos também a conheciam, por isso, como ''a delegacia''.
Os jornalistas responsáveis, íntimos do círculo policial repressivo, trocaram intencionalmente a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que corroborassem o ideário autoritário oficial. Certamente, acreditavam em suas ações, compactuando sempre com o poder vigente. A essa atitude se pode dar o nome de autocensura, como também colaboração.
Fiéis aos seus ''donos'', esses cães de guarda farejaram uma brecha, protegeram uma suposta morada e, principalmente, ao defender o castelo, venderam à sociedade uma imagem errônea. Quando o ''tabuleiro do poder'' modificou-se, muitos desses servidores foram aposentados, outros construíram para si uma imagem positiva e até mesmo heróica, distanciando-se do que haviam feito. Outros tantos se readaptaram e estão na mídia como sempre.
De todos esses esquemas e estruturas para perder poucos anéis, algo deve ser sublinhado. O jornal, impresso ou televisionado, é um produto que vende um serviço, a informação, comprada pelos leitores. Assim, muitos pagaram pelo jornal impresso para saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso no jornal, mesmo que no dia seguinte este tenha virado simples papel de embrulho de peixe nas feiras.

Vermelho: Que eu saiba, a Folha jamais reconheceu — e resiste a abordar — seu colaboracionismo. Você acredita que, com novas revelações e denúncias, a família Frias poderá mudar de estratégia e se retratar publicamente?
BK: Não creio.
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Que esperar de uma mídia que não nasceu para todos?


A grande mídia vive uma era de desolação. Ao mesmo tempo em que a audiência e o prestígio da toda-poderosa TV Globo não param de despencar, a Folha de S.Paulo atravessa a maior crise de credibilidade de sua história. Para o jornalista Rodrigo Vianna, da TV Record e do blog Escrevinhador, não é o caso de falar em “ilusões perdidas”. Errado mesmo, diz ele, é pensar em nutrir expectativas com os grandes veículos de comunicação.


“Historicamente, desde pelo menos a Revolução Francesa, os jornais são partidários — e, na verdade, nunca deixaram de estar acima das facções. Por que, então, cobrar que a mídia não seja aquilo que ela nasceu para ser?”, questionou ele, sábado passado (18), no Memorial da Resistência, em São Paulo. Ao lado do jornalista Alípio Freire e da historiadora Beatriz Kushnir, Vianna debateu o tema “O papel da mídia na democracia e durante a ditadura militar”.

À frente deles, num auditório lotado, cerca de 150 participantes acompanhavam o evento, promovido pelo Memorial em parceria com o Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. Estavam lá, em maior número, vítimas do regime militar (1964-1985) e familiares, bem como jornalistas e artistas que combateram a ditadura. Mas também havia muitos jovens — em geral estudantes e jornalistas da novíssima geração. “Num sábado de feriado prolongado, eu jamais esperaria tanta gente”, admitiu Rodrigo Vianna ao público.

Na introdução ao debate, Alípio Freire, editor do Brasil de Fato, disse que a origem colonial do país determinou a falta de democratização da mídia. “A Coroa portuguesa impôs não só o monopólio da terra, do comércio — mas também o monopólio das comunicações. A voz do trono — a voz do poder — era a que podia se pronunciar, e quem ousasse imprimir à margem disso poderia ser preso”. Em 201 anos de imprensa no Brasil, “nunca houve mídia popular capaz de concorrer com a mídia comercial”.

Segundo Alípio, a mesma mídia que se diz democrática e pluralista disputa a hegemonia até no interior do PT, abrindo espaço a petistas “menos danosos”, que concordem em fazer acordos. O custo dessa aproximação foi alto, sobretudo para políticos que ganharam mais visibilidade durante o governo Lula, como os ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci. “Destruíram duas lideranças do PT que poderiam acenar a ser sucessores do Lula”, diz Alípio. “É tolice achar que a mídia destruiu o Palocci e o Dirceu por razões éticas e morais. Foi assassinato.”

Apoio e colaboração

As relações entre grande mídia e ditadura militar foram dissecadas por Beatriz Kushnir, autora do arrasador Cães de Guarda — Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1989. Beatriz usa frases curtas e reveladoras: “A maioria da grande imprensa colaborou com o regime”; “Quando digo ‘colaborou’, quero dizer que foi mais que um pacto. Eles se engajaram mesmo”. “A Folha apoiou em 1964 e colaborou a partir de 1968”.

De acordo com a historiadora, cada órgão da grande mídia lidou com a censura à sua maneira. “Dos anos 50 a 1988, o Brasil teve no máximo uns 220 censores, que precisavam percorrer o país inteiro e checar jornais, revistas, as artes, a propaganda. Como não foi possível dar conta de tudo, veio a autocensura”. Amedrontada com a propaganda anticomunista, parte da sociedade mandava cartas ao Ministério da Justiça para cobrar mais rigor na censura.

O Jornal do Brasil, no esquema “corte você”, orientava os repórteres a se adiantarem ao risco de censura. A Globo contratou censores aposentados, que passaram a instruir os profissionais da rede. A Abril foi mais longe: seus funcionários iam a Brasília e davam aulas de jornalismo aos censores. Data desse período uma extensa troca de correspondências entre o diretor-fundador da Abril, Victor Civita, e a diretoria da Polícia Federal.

Nenhum exemplo de cooptação se equipara ao colaborionismo do Grupo Folha — a empresa administrada, à época, por Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira. Até 1969, a redação da Folha da Tarde, sob o comando de Jorge Miranda Jordão, ex-Última Hora, era dominada por jornalistas ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighela. De jornal à esquerda — que concorreu brevemente com o Jornal da Tarde, do Grupo Estado —, a FT se transforma no “diário oficial da Operação Bandeirasntes”, a então recém-criada Oban.

O periódico tinha como editor-chefe Antônio Aggio Jr., indicado por Caldeira e especializado em jornalismo policial. “Aggio veio de Santos e trouxe dois companheiros — um deles com forte influência nas forças de repressão”, afirma Beatriz. O diário da família Frias estava tomado de policiais. Um jornalista da editoria de “Mundo” trabalhava de manhã no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e à tarde no jornal. Muitos andavam armados na redação, segundo a autora de Cães de Guarda. “O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca.”

Com acesso privilegiado ao poder, a Folha da Tarde dava “as notas mais bem escritas e detalhadas sobre mortes” nos porões do regime. A manchete “Morto o assassino do industrial Boilesen”, de 17 de abril de 1971, é exemplo de cooperação. O metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas, conhecido como Roque, foi morto primeiro na capa da FT e apenas horas depois no DOI-Codi. O jornal, tal como o conjunto da grande imprensa, ainda chancelou a mentira de que Roque fora vítima de uma troca de tiros na Avenida do Cursino.

Das dez pessoas que pediram a palavra durante o debate no Memorial da Resistência, três disseram ter sido conduzidas à tortura em peruas do Grupo Folha. O jornalista e ex-preso político Rui Veiga apresentou uma denúncia ainda mais grave: “Um repórter da Folha acompanhou meu transporte da Oban até o Dops e me aconselhou a não esconder nada — a colaborar com o regime”.

sábado, 18 de abril de 2009

Luís Eduardo Merlino

Chico Caruso Folha da Tarde, 14 de maio de 1969

"[...] No dia seguinte, 3 de outubro [1968], foram duas as manchetes da primeira página: os 12 mil estudantes reprimidos por soldados do Exército na Cidade do México e 'Maria Antônia volta a ferver', quando um aluno, José Guimarães, foi morto por membros do CCC [Comando de Caça aos Comunistas] e do Mackenzie. As fotos do confronto entre os alunos do Mackenzie e os da Filosofia da USP, que ganharam manchete também no dia 4 de outubro, foram feitas por Makiko Yshi, fotógrafa da Folha da Tarde e uma das primeiras mulheres nessa função. Nelas aparecem os estudantes do Mackenzie atirando na direção da fotógrafa. Recorrente na memória de seus colegas, essa seqüência de três fotos ilustra o clima que o jornal procurava captar nas ruas e mostrar." [p. 246](...)"Dez dias depois, em 14 de outubro, a chamada da primeira página dizia: 'UNE já pensa na sua volta'. Depois do cerco policial ao trigésimo congresso da entidade ocorrido dois dias antes, em Ibiúna, onde mais de setecentos estudantes foram presos, os libertos prometiam passeatas por todo o país. Frei Betto relatou que o setorista de polícia da Folha da Tarde informou-lhe que os estudantes seriam presos durante o congresso clandestino. Mas era impossível avisá-los. Assim, restou ver a cobertura do congresso proibido feita para o jornal por Luís Eduardo Merlino e Antônio Melo, que é rica em detalhes, nomes e fotos.(...)Solucionando o dilema, a Folha da Tarde ilustrou as prisões em Ibiúna de maneira detalhada. Como o jornal nascia com a proposta de cobrir os movimentos estudantis, Luís Eduardo Merlino esteve presente no congresso proibido da UNE para cobri-lo. Mesmo detido e transferido para o presídio Tiradentes, Merlino pôde, além de reportar os fatos, trazer mensagens dos companheiros presos. Sua reportagem, de cinco páginas, relatava e mostrava a violência praticada no local, que aumentaria a partir de então por todo o país. Merlino contou sobre os jovens que chegavam de todas as partes e que tomaram de surpresa a pacata Ibiúna, que ficou sem comida. Os homens do Dops aportaram na quinta-feira, dia 10, ao mesmo tempo em que os estudantes também continuavam a desembarcar. O jornalista preocupou-se em nomear cada agente da repressão envolvido e em denunciar a prisão dos líderes estudantis, como Vladimir Palmeira, Luís Travassos, José Dirceu e Franklin Martins, e do seu amigo dos tempos do Amanhã, José Roberto Arantes. No pátio do presídio Tiradentes, o orgulho (sarcástico) dos investigadores do Dops pelo sucesso da 'colheita de tantos subversivos' foi registrado pelo jornal. Solto, Merlino fez das páginas da Folha da Tarde testemunhas de tudo que viu e uma longa análise do movimento estudantil no pós-1964" [p.247].

Para mais sobre Merlino, ver em Observatório das Violências Policiais - SP: Luiz Eduardo Merlino (trecho de Dos filhos deste solo), Meu amigo Merlino (Joel Rufino dos Santos), Nicolau: diário da motocicleta (Maria Regina Pilla), Lembranças de Nicolau (Michael Löwy), O 30º Congresso da UNE - 1968 (Reportagem Folha da Tarde - outubro 1968 e trechos de Cães de Guarda - Jornalistas e Censores), História do POC, Merlino e o trotskismo, Os nossos (Nelson de Souza Kohl), Merlino jornalista

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Revista Caros Amigos - Edição 145, abril/2009


No intuito de mapear os debates em torno da declaração de "Ditabranda" emitida pelo jornal Folha de S. Paulo em Editorial, a Revista Caros Amigos produziu quatro conjuntos de matérias em um total de sete páginas. Duas dela são sobre o meu livro.
Ao ler o texto abaixo, que reproduz as minhas declarações, o Caro Leitor deste Blog pode ter a falsa ideia de um árduo trabalho de pesquisa e investigação da jornalista. Preocupada em não reforçar uma noção errônea, me vejo obrigada a adverti-lo: todas as reflexões abaixo foram extraídas do Cães de guarda. Faltou apenas as aspas...
Assim, Caro Leitor, enquanto não se alterarem as práticas e os pactos sociais, esses "deslizes" de propriedade intelectual continuarão a ocorrer... Infelizmente!.

Revista Fórum - Edição 72 • Março de 2009




Revista Fórum: "No dia 17 de fevereiro não foram poucos os leitores do jornal Folha de S. Paulo que se surpreenderam com o editorial sobre a reforma política na Venezuela: ali, em termos bem legíveis, o neologismo “ditabranda” foi usado para se referir ao período do regime militar de 1964 a 1985 no Brasil. Não tão “neo” assim: Pinochet já usara a palavra para se referir à própria ditadura no Chile, uma das mais sangrentas da América Latina do século passado.

O que era um editorial sobre Chávez acabou rendendo uma repercussão – desfavorável – sobre a posição do jornal com relação à ditadura. Dois dias depois, a Folha dá outro tiro no pé e publica, junto das cartas do professor Fábio Konder Comparato e Maria Victória Benevides protestando contra o termo usado pelo jornal, uma nota da redação logo abaixo, chamando ambos de cínicos e mentirosos. O episódio fez recordar a história do jornal, que foi conivente com a ditadura.

A tese de doutorado de Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, faz um levantamento da história do grupo Folha e aponta para uma relação promíscua entre jornalistas e militares. “A Folha da Tarde era conhecida como o diário oficial da Oban”, lembra Beatriz, recordando das muitas vezes em que o jornal reproduzia notas saídas dos bancos da tortura militar. A tese virou livro, publicado há cinco anos: Cães de guarda: jornalistas e censores. Para a pesquisadora, o que guiou a Folha de S. Paulo não foram motivos ideológicos, mas o puro interesse mercadológico, como acredita que deve ter orientado também o polpolêmico editorial.

Fórum – O que explica a atitude da Folha de S. Paulo ao chamar o regime militar brasileiro de “ditabranda”?
Beatriz Kushnir – É uma coisa surpreendente. Não se consegue entender por que tanto tempo depois ela vem com essa expressão, principalmente com a resposta dada aos professores. É uma coisa que se precisa entender o que levou os editores da Folha a tomarem essa posição. Vale a pena lembrar que o jornal, no processo das Diretas Já, se engaja enquanto projeto mercadológico, e não por uma questão ideológica. Talvez isso explique um pouco, mas não há explicação para ter gerado essa polêmica toda.

Fórum – Mas isso reproduz uma ideia de parte da sociedade de que a ditadura no Brasil foi branda, ou pelo menos uma parte dela?
Kushnir – Não, a historiografia brasileira mais contemporânea não trabalha com essa ideia. Não existe um termômetro para medir o quanto mais branda ou mais violenta é uma ditadura. Ela foi violenta, matou, torturou, censurou. Não há como dizer que ela é branda. É muito complicado relativizar, porque ela tem um momento de maior uso da violência e de menor uso, mas só de haver uma deposição, uma Junta Militar, não ter eleições, ter um Congresso fechado, ter leis de segurança nacional, leis de censura – inclusive de censura prévia –, tudo isso demonstra uma ação autoritária do Estado brasileiro, que é e sempre foi bastante autoritário.

Fórum – A Folha costuma afirmar que faz um jornalismo objetivo e baseado no respeito às diferenças. Mas quando o professor Fábio Konder Comparato e a professora Maria Victória Benevides protestaram contra a postura do jornal o diário publicou uma nota ofendendo ambos...
Kushnir – A Folha usa uma expressão publisher, como se a imprensa pudesse ser uma coisa neutra. O que a gente tem que entender é que a imprensa é uma empresa privada que vende serviços públicos. Mas sempre se soube da relação promíscua que se tinha com os governos, até porque os governos são os grandes financiadores de campanhas publicitárias. O que parece ter ficado claro nesse episódio é que hoje em dia o UOL é muito mais rentável do que o próprio jornal. O lucro da empresa vem muito mais do UOL do que do próprio jornal.

Fórum – Em seu livro Cães de guarda: jornalistas e censores, você aponta para um alinhamento dos jornalistas da Folha com a ditadura militar. Por que houve esse alinhamento e como ele se deu?
Kushnir – O jornal Folha da Manhã teve que fazer frente ao Jornal da Tarde, do grupo Estado, que estava basicamente voltado para o público mais jovem cobrindo essas manifestações estudantis. A certa altura, a empresa recupera o jornal Folha da Tarde e traz um jornalista engajado do Rio de Janeiro, Miranda Jordão, com uma redação de esquerda para o jornal. Mas com o assassinato do [Carlos] Marighella toda essa redação cai, porque a maioria dos jornalistas era da Ação Libertadora Nacional (ALN). O jornal faz uma guinada à direita, trazendo um jornalista de Santos, Antonio Aggio Jr., que faz esse alinhamento. O que tem que se entender é que a Folha de S. Paulo, quando vai pras mãos da família Frias, é uma sociedade Frias/Caldeira, e as relações que os Frias e os Caldeira vão ter com o governo é que vai explicar toda essa relação. A Folha da Tarde, na concepção da empresa Folha da Manhã, foi o quinhão a ser pago para a ditadura. O jornal Folha da Tarde ficou conhecido durante muito tempo como o Diário oficial da Oban, pelo número de policiais que existiam dentro das redações e por publicar as notas oficiais que saíam de dentro dos equipamentos de tortura. No blogue que eu tenho do meu livro (caesdeguarda-jornalistasecensores.blogspot.com), venho publicando reportagens que explicam essas questões, que mostram essa relação bastante promíscua entre os jornalistas da Folha de S. Paulo e os órgãos de repressão. A Folha cedia carros para os militares e muitos carros foram queimados exatamente por isso: os militantes chegavam perto dos carros para avisar que estavam sendo perseguidos, e na hora descobriam que tinha policiais ali dentro.

Fórum – O que representou para os militares e para o governo militar o apoio de setores da imprensa, como o da Folha?
Kushnir – O golpe de 1964 é um golpe civil-militar. Os próprios jornais, como o Correio da Manhã e outros, nas vésperas do 31 de março de 1964, pedem o golpe. A própria ditadura teve um apoio da sociedade civil, foi ela que apoiou o golpe durante muito tempo. A ditadura acaba muito mais por uma questão econômica do que por uma movimentação da sociedade. A ditadura e o golpe não surgiram do nada, eles são fruto do desejo de uma camada da sociedade brasileira, não só dos militares. E dos jornalistas, que não são diferentes de ninguém, como os censores também não são. Há uma tradição de se pensar nos jornalistas como militantes de esquerda, mas a questão da autocensura nas redações é uma questão bastante delicada e muito pouco comentada. Os jornalistas sabem desde sempre que no jornal da grande imprensa tem um dono que paga seu salário, a luz, o computador, o papel. E o jornal dele, como diria Claudio Abramo, quer passar o que o dono quer. Você escreve o que você quiser, mas vai publicar o que o editor deixar. A censura não está restrita só às ditaduras.

Fórum – Outros jornais também colaboraram com a ditadura na época...
Kushnir – Houve uma limpeza que todas as redações fizeram, a pedido do governo, retirando jornalistas importantes naquele momento, o que vai dar origem ao que se chamou no Brasil de imprensa alternativa, que vem desse universo de jornalistas que já não encontram mais local de trabalho na grande imprensa. No Estadão, a publicação dos poemas de Camões era uma concessão dos censores ao jornal, o que não houve a outros veículos, porque era um jornal que, na visão dos censores, não tinha leitores que perceberiam que estava sendo censurado. Na época, o público do Estadão era o mesmo de hoje em dia, uma elite conservadora paulista.

Fórum – Dado esse histórico de proximidade e acobertamento das atrocidades da ditadura pela Folha de S. Paulo, como o jornal, em dado momento, conquistou um público de alas mais progressistas da sociedade?
Kushnir – Porque a Folha vem de um Projeto Folha durante as Diretas Já, com um publishman, afirmando-se como um jornal moderno, junto ao que há de mais contemporâneo naquele momento, estava cobrindo o fato de maior importância do país, que é o processo de redemocratização brasileira. Então aí alinham-se personagens de esquerda. Eles mudaram o discurso, a fachada do jornal, mas não por uma questão ideológica, e sim por uma questão de mercado, que só vai ser percebida pelos intelectuais – se é que é percebida – muito depois. Ele começa a oferecer cadernos de cultura, entra num mercado de republicação de livros que estava ressurgindo. Esses intelectuais de esquerda se aproximam muito por esse espaço no jornal. Já o Estadão tem uma imagem mais complicada, de ser mais tradicional, conservador, e a Folha vinha com um outro discurso, de modernidade.

Fórum – Você acredita que a Folha possa vir a perder esses leitores com esse episódio?
Kushnir – Acho que a gente tem que esperar um pouco pra ver as consequências de tudo isso, a gente ainda está muito no calor da hora. O que se pode perceber com a petição on-line que o professor Caio Navarro colocou no ar, é que ela tem chegado a números muito expressivos, inclusive com muita rapidez". F

domingo, 12 de abril de 2009

Sábado Resistente

Sábado Resistente - Data: 18 de abril de 2009, Horário: das 14h às 17h30
Local: Memorial da Resistência - Largo General Osório, 66 – Luz

O PAPEL DA MÍDIA NA DEMOCRACIA E DURANTE A DITADURA MILITAR

O recente debate levantado pelo jornal Folha de São Paulo, que tentava relativizar a importância da Ditadura Militar ao dizer que no Brasil houve uma Ditabranda, reacendeu a antiga questão sobre o papel da mídia na derrubada do Governo Constitucional de João Goulart e a sua colaboração na destruição do processo democrático de então. O apoio ao Golpe de 1964 acabou por defender o regime de Terrorismo de Estado e alguns órgãos de comunicação passaram a ser coniventes com as torturas e os assassinatos.
Com que direito a mídia pode ajudar na derrubada de governos? Quais seus interesses? Quais os meios para conter esse poder devastador da mídia? Qual deve ser a relação da Sociedade Civil com a mídia?
O Núcleo de Preservação da Memória Política do Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo e o Memorial da Resistência convidam para um debate sério sobre este importante assunto.
Coordenação: Alípio Freire [Jornalista, ex-preso político e membro do Núcleo de Preservação da Memória Política]
Debatedores: Rodrigo Vianna [Jornalista e editor do site O Escrivinhador, Trabalhou na Rede Globo e rompeu publicamente com a empresa por discordar da cobertura tendenciosa das últimas eleições presidenciais. Hoje trabalha na Rede Record].
Beatriz Kushnir [Historiadora e autora do livro Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, considerado o 5° melhor livro em Ciências Humanas pelo Prêmio Jabuti (2005), que tem como foco central o papel do Grupo Folha durante a ditadura e sua colaboração com a repressão política, principalmente com o DOI/CODI-SP].

Na ocasião, haverá o re-lançamento dos livros: No corpo e na alma (autobiográfico) de autoria de Derlei De Lucca, ex presa política catarinense, e Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir.
O Sábado Resistente é promovido pelo Núcleo de Preservação da Memória Política do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo e pelo Memorial da Resistência. É o espaço de discussão entre companheiros combatentes de ontem e de hoje, amigos, estudiosos, estudantes e visitantes do Memorial da Resistência para o debate de temas ligados às lutas contra a repressão, em especial à resistência ao regime militar, implantado com o golpe de Estado de 1964.
Nossa preocupação é estimular a discussão e o aprofundamento dos conceitos de Liberdade, Igualdade e Democracia, fundamentais ao Ser Humano em busca de sua libertação.

No Barão de Itararé: Mídia e Golpismo, Ontem e Hoje (1964-2024)

  Car@s; Deixo um debate muito bacana que participei.  Para assistir, click na imagem.