quinta-feira, 17 de maio de 2007

Golpe militar de 1964, Guy de Almeida

Neste artigo, o autor traça um panorama informativo sobre o comportamento da imprensa brasileira durante os 20 anos de regime militar, sinalizando também as mudanças que, ao longo desse período, delinearam um novo perfil para o setor de comunicação. O autor põe ainda um foco sobre a imprensa mineira, refazendo a sua trajetória em alguns momentos desses anos de chumbo. [...] Em Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, Beatriz Kushnir, doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp, viria a apresentar documento interno do Jornal do Brasil, de dezembro de 1969, que instituíra um controle de qualidade sob o ponto de vista político, considerando que o exercício da liberdade de expressão tem que ser pautado pelo bom senso e pela prudência.
O jornal definira-se então como não sendo de situação, nem de oposição, lutando pela restauração da plenitude do regime democrático no Brasil, pelo retorno ao estado de direito, mas sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco ao governo. Entre as instruções, optar pela suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal, pois para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver.
Em uma avaliação na passagem dos 30 anos de edição do AI-5, o jornalista Jânio de Freitas consideraria que a imprensa, embora uma ou outra dissidência, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura, acentuando que, naqueles tempos e desde 64, o Jornal do Brasil fora o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime.
Consideração de Kushnir facilita o entendimento do título de seu livro: esses jornalistas colaboracionistas são aqui vistos como cães de guarda. À soleira, montaram guarda e fizeram autocensura no governo Médici e mesmo antes dele, colaborando para construir e difundir uma imagem irreal, inverídica do País. E seguiram o fluxo quando o tabuleiro do poder mudou a disposição das peças.
Para além da autocensura, o caso mais singular de colaboração com o regime de exceção parece ter sido o da Folha da Tarde, do grupo Folhas de S. Paulo. Relançado em 1967, aquele jornal manter-se-ia até parte de 1969 em linha inusitada para a época, tendo como membros da redação vários militantes de grupos clandestinos da resistência de esquerda ao regime, que, inclusive, chegariam a utilizar essa condição para as suas atividades políticas. Alguns meses após a edição do AI-5, concluir-se-ia essa etapa e o jornal passaria para o outro pólo, sob nova direção que o transformaria no jornal mais sórdido do País, segundo Cláudio Abramo, que fora diretor de redação da Folha de S. Paulo. Ademais do duro tratamento informativo aos movimentos armados contrários ao regime ditatorial, o jornal seria acusado de cessão de carros da empresa aos órgãos de repressão (DOI-CODI).
Esse disfarce possibilitaria, na compreensão dos militantes, que a polícia montasse emboscadas prendendo ativistas. Alguns desses carros seriam incendiados em represália, por movimentos de esquerda, em 1971.

Censurou, virou manchete

Revista FAPESP, Setembro 2001 - Edição 68

Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988 deve jogar um balde de água fria na idéia romântica de que os jornalistas da imprensa brasileira esgrimavam freqüentemente suas canetas contra a ditadura. Tese de doutorado de Beatriz Kushnir, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Cães de Guarda tem como cenário o período sombrio da ditadura no Brasil.
O motivo inicial do trabalho, patrocinado pela FAPESP, era entender a lógica interna da censura naqueles anos. Mas, no meio do caminho, a pesquisadora deparou com uma trilha paralela que ampliou sua análise."Havia a idéia quixotesca de que o jornalista, mesmo no período do pós-64, usou os jornais como uma frente de resistência, mas isso só ocorreu fortemente na imprensa alternativa, não na grande imprensa como um todo", enfatiza Beatriz. "Escrevendo nos jornais ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso, os jornalistas colaboraram com o sistema autoritário implementado naquele período."A pesquisadora iniciou esse doutorado em 1996.
A partir de 1997, ela começou a vasculhar a documentação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e os arquivos de Brasília e da Academia Nacional de Polícia. Ela também fez pesquisas nos bancos de dados do jornalFolha de S. Paulo , na editora Abril e nos arquivos pessoais dos jornalistas Joel Silveira e Ana Maria Machado (Rádio JB).
Ela fez, ainda, entrevistas com jornalistas que passaram especificamente pela Folha da Tarde e com outros jornalistas de outros veículos. Também entrevistou o cineasta Roberto Farias, ex-presidente da Embrafilme e diretor do filmePra Frente Brasil e 11 censores - mulheres e homens de faixas etárias diferentes entre 1950 e 1986 que estão aposentados ou ainda são funcionários do Departamento de Polícia Federal (DPF).Vale ressaltar que, dos 11 censores entrevistados, apenas dois autorizaram a divulgação de seus nomes.
Solange Hernandes foi uma delas. Outro foi Corioleano de Loyola Cabral Fagundes, hoje pastor evangélico. Ele era o chefe doDepartamentode Censura de Diversões Públicas (DCDP) quando o então presidente José Sarney (1985-1990) vetou Je Vous Salue Marie , do cineasta Jean-Luc Godard, o último filme a ser censurado no país, e quando decretou-se o fim da censura.Tramas legislativasInicialmente, Beatriz mapeou a legislação censória no período republicano. Embora quase não tenha encontrado documentação sobre a censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no Estado Novo (1937-1945), ela procurou cruzar as semelhanças e as diferenças entre os dois períodos. "Tentei registrar o 'locus' institucional das agências de censura no aparelho de Estado, as tramas legislativas construídas no período republicano e as gerações dos técnicos de censura do (DCDP), além de toda a estratégia corporativa montada por este grupo para sobreviver após a decretação do fim da censura oficial em 1988", resume a pesquisadora.
Ao entrar no corte temporal escolhido para sua análise, Beatriz começou a encontrar nomes e alguns rostos dos censores. Foi ao começar as entrevistas que percebeu que poderia ampliar sua tese. Nessa fase, ela se deu conta de que os dez primeiros censores deslocados para Brasília, quando da transferência da capital, tinham o jornalismo como ocupação anterior, o que a fez ampliar a sua investigação. "Há duas explicações para isso; uma é que, nos concursos para técnico de censura, a única ocupação que se podia ter além de ser censor era a de jornalista", explica.Beatriz ressalta, ainda que, no Brasil, também havia a prática do duplo emprego dos jornalistas, um deles dentro de órgãos do governo.O Correio da Manhã , de acordo com ela, tentou quebrar essa prática nos anos 60, mas não obteve sucesso.
O escritor Carlos Heitor Cony conta isso com clareza em seu livro Quase Memória , sobre o pai que também era jornalista. "Daí dá para compreender como eles se tornaram censores. O problema é que depois eles continuaram censores", conclui a pesquisadora. Um dos jornalistas-censores que Beatriz aponta foi José Vieira Madeira. "Ele trabalhava noJornal do Brasil e, depois que deixou de ser censor, teve uma coluna em O Dia", conta.
Assim, em Cães de Guarda Beatriz foca sua análise em dois cenários e no diálogo que eles estabelecem entre si: os jornalistas que trocaram as redações pela burocracia e se tornaram técnicos de censura e os policiais de carreira que atuaram como jornalistas colaborando com o sistema repressivo a partir das redações. Para entender esse último grupo Beatriz redesenhou a trajetória da Folha da Tarde.
Sobre essa empresa do Grupo Folha da Manhã a pesquisadora dedica especial atenção a dois momentos da história do jornal: "Primeiro, o foco é em 1967, quando a FT renasceu, dirigido por Miranda Jordão (hoje, ele trabalha emO Dia ) para fazer frente ao Jornal da Tarde , do Grupo Estado, que acabara de ser lançado." Beatriz ressalta que era um momento em que a redação da FT estava repleta de bons jornalistas, ainda na ativa - como Rose Nogueira ou Tonico Ferreira, entre vários outros que ela entrevistou."Muitos deles eram simpatizantes de esquerda, engajados ou militantes que atuavam na luta armada, principalmente na Aliança Libertadora Nacional (ALN). Mas na noite da morte do líder Carlos Marighella, em novembro de 1969, começaram a cair militantes, muitos deles jornalistas daquela redação", diz Beatriz. "Finalmente, com o AI-5, MirandaJordão foi mandado embora e o jornal mudou completamente de perfil", conta.
No lugar de Jordão, de acordo com ela, foi colocado Aggio (Antonio Aggio Jr. atual assessor de imprensa do senador Romeu Tuma), que veio do jornal Cidade de Santos."Durante uma década e meia o jornal ficou sob o comando de policiais e muitos dos jornalistas que ali trabalharam também exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo", diz a professora. "Alguns achavam que o local mais lembrava uma delegacia e o jornal ganhou o apelido de ser o de 'maior tiragem', dado o número de tiras (policiais) que empregava." A família Frias só voltou a ter o nome no expediente do jornal em 1984. Otávio Frias Filho assumiu aFolha de S. Paulo , Aggio saiu da FT e entraram Carlos Brickman e Adilson Laranjeira. O jornal passou por uma reformulação e foi modernizado.
Em entrevista à Pesquisa FAPESP, Aggio contou sua versão dos fatos. "A reformulação da FT e o Projeto Folha de 1984 nada tiveram a ver com ideologia, mas com mercado", observa. O jornalista lembra que, ao sair da direção do jornal, Miranda Jordão permaneceu na empresa. "Quem ficou no seu lugar foi Antonio Pimenta Neves e, depois, o diretor foi Francisco de Célio César", diz. "Só depois é que fui chamado por Frias para dirigir a FT. Era o final de 1969 e ali permaneci até 1984." Aggio garante que o único policial que atuou na redação foi levado por ele da Cidade de Santos. "Era o Carlos Antonio Guimarães Sequeira, estudante de direito que queria ser jornalista e, ao mesmo tempo, prestou concurso para delegado", afirma. "Passou no concurso, mas como se revelou um excelente jornalista de Internacional o convidei para ser editor da FT."
Tortura
Durante sua investigação, a Beatriz conheceu Ivan Seixas, jornalista que foi militante da esquerda armada e que, com outros ex-militantes, acusa a FT daquele período negro de legalizar mortes em tortura. Seixas contou que, em abril de 1971, quando ele tinha 16 anos, fora preso com o pai depois da morte do empresário Henning Albert Boilesen, um dos milionários que financiaram a Operação Bandeirantes (Oban). O assassinato era atribuído ao Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), organização à qual os dois eram vinculados. Na prisão, pai e filho foram torturados.
À certa altura, de acordo com o depoimento do jornalista, os policiais foram passear com o jovem pela cidade. "Pelo rádio ele ouviu que os policiais receberam ordem de matá-lo; pararam em um boteco para tomar café e Ivan olhou pela janela para uma banca de jornal na qual uma manchete anunciava que seu pai fora morto ao ser capturado", conta ela. "Mas não era verdade, pois quando Ivan e os policiais voltaram para a prisão ele viu o pai ainda vivo e ainda sendo torturado", conta."Ao analisar essa e outras reportagens daqueles tempos percebi que elas refletem boa parcela da cobertura desses casos com o desfecho que interessava na época, ou seja, percebe-se que não eram um mero texto imposto, há um material jornalístico com o interesse de que se divulgue uma imagem da luta armada como subversivos e terroristas", diz.
"Por isso, a partir desse caso, procurei me aprofundar na história desse jornal para tentar entender o que foi e quem estava naquela redação."Esse estudo, de acordo com ela, toca sobretudo na questão da ética, mas principalmente se centra nas práticas do ofício jornalístico, nas normas a se seguir e principalmente nos seus momentos de quebra. "Nesse sentido, é importante não se esquecer que a imprensavende um serviço,ao se comprar o impresso adquire-se uma informação, portanto, negocia-se a veracidade de um relato", observa ela. "Assim, o que ocorreu na Folha da Tarde de 1969 a 1984 é algo muito relevante para pensar as normas que regem esse 'negócio' e no colaboracionismo da grande imprensa com o sistema."Resumindo o resultado de seu trabalho, que rendeu mais de 400 páginas, Beatriz considera que ao focar seu estudo na imprensa encontrou caminhos para refletir a relação entre jornalistas e historiadores na investigação e feitura da história do tempo presente.
"Devemos considerar que, passados 30 anos, os jornalistas recontam sua história se colocando como lhes interessa", diz a pesquisadora.
As surpresas e provável tema para polêmica não param por aí: "O que mais me surpreendeu foi detectar a auto-censura nas redações mesmo antes desse período e depois de 1988: o jornalista, conhecedor do veículo em que trabalha, seleciona o que pode ou não falar", acrescenta.

O CONTEXTO DA IMPRENSA DURANTE 1968

Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir (São Paulo, Boitempo Editorial, 2004)

Cap. 4 – O jornal de maior tiragem: a trajetória da Folha da Tarde

Os jornalistas
(...)“Quando Abramo chegou pela primeira vez à Folha de S. Paulo, em fins da década de 1960, o jornal se encontrava em um momento de afirmação. O ano de 1967 foi o período inicial das transformações da Folha, quando o grupo passou a investir em tecnologia, com a aquisição de máquinas offset, e no aumento da frota para acelerar a entrega de seus jornais. Essas alterações se iniciaram pelo jornal Cidade de Santos, em 8/7/1967, e chegaram à Folha de S. Paulo em 1º /1/1968. No meio do caminho, em 19/10/1967, contemplaram a Folha da Tarde, que renasceu a partir de então. A utilização do offset permitiu que a Folha da Tarde fosse o primeiro jornal paulistano a publicar fotos coloridas na primeira página.” [p. 226]
Por que a Folha da Tarde renasceu?
(...)“A Folha da Tarde renasceu em uma brecha ainda aberta em fins de 1967 e que logo se fechou. Se o jornal despontou sob o signo arrojado, foi perdendo esse fôlego no decorrer da caminhada. Para fazer frente ao Jornal da Tarde, tido por muitos como mais à esquerda, ou menos à direita, o Grupo Folha da Manhã, relançou a Folha da Tarde, com uma diretriz, naquele instante, de reportar a efervescência cultural e as manifestações estudantis a pleno vapor.” [p. 230](...)
“Nessa 'nova ordem mundial' [rock’n’roll, movimento feminista, guerra do Vietnã, Maio de 68 em Paris, Che Guevara] o JT e a Folha da Tarde, quando chegaram às bancas, encontraram no Brasil os festivais de música que revelaram Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Geraldo Vandré e muitos outros. O próprio Roberto Carlos, tido como mais 'enquadrado', mandava tudo para o inferno. No teatro, o Oficina encenava O rei da vela, e quatro peças de Plínio Marcos estavam em cartaz em São Paulo.(...)Mas também havia a efervescência contestatória dos movimentos estudantis, que cresciam em uma proporção geométrica, e os primeiro passos da luta armada. Assim, eram tempos em que as radicalizações engatinhavam.” [p. 231](...)“Essa proposta cumpriu seu papel por pouco mais de um ano e oito meses. No meio do caminho entre essa intenção e a realidade, tem-se a decretação do AI-5. Seguindo o desenho do novo tabuleiro político a partir de então, esse jornal passou a ter uma péssima fama e a sua redação foi completamente reformulada. Se no período até meados de 1969 tem-se a bonança, depois reinaram as trevas.” [p. 232]
Antes da tempestade, a bonança
(...)“No dia seguinte, 3 de outubro [1968], foram duas as manchetes da primeira página: os 12 mil estudantes reprimidos por soldados do Exército na Cidade do México e 'Maria Antônia volta a ferver', quando um aluno, José Guimarães, foi morto por membros do CCC [Comando de Caça aos Comunistas] e do Mackenzie. As fotos do confronto entre os alunos do Mackenzie e os da Filosofia da USP, que ganharam manchete também no dia 4 de outubro, foram feitas por Makiko Yshi, fotógrafa da Folha da Tarde e uma das primeiras mulheres nessa função. Nelas aparecem os estudantes do Mackenzie atirando na direção da fotógrafa. Recorrente na memória de seus colegas, essa seqüência de três fotos ilustra o clima que o jornal procurava captar nas ruas e mostrar." [p. 246](...)"Dez dias depois, em 14 de outubro, a chamada da primeira página dizia: 'UNE já pensa na sua volta'. Depois do cerco policial ao trigésimo congresso da entidade ocorrido dois dias antes, em Ibiúna, onde mais de setecentos estudantes foram presos, os libertos prometiam passeatas por todo o país. Frei Betto relatou que o setorista de polícia da Folha da Tarde informou-lhe que os estudantes seriam presos durante o congresso clandestino. Mas era impossível avisá-los. Assim, restou ver a cobertura do congresso proibido feita para o jornal por Luís Eduardo Merlino e Antônio Melo, que é rica em detalhes, nomes e fotos.(...)Solucionando o dilema, a Folha da Tarde ilustrou as prisões em Ibiúna de maneira detalhada. Como o jornal nascia com a proposta de cobrir os movimentos estudantis, Luís Eduardo Merlino esteve presente no congresso proibido da UNE para cobri-lo. Mesmo detido e transferido para o presídio Tiradentes, Merlino pôde, além de reportar os fatos, trazer mensagens dos companheiros presos.
Sua reportagem, de cinco páginas, relatava e mostrava a violência praticada no local, que aumentaria a partir de então por todo o país. Merlino contou sobre os jovens que chegavam de todas as partes e que tomaram de surpresa a pacata Ibiúna, que ficou sem comida. Os homens do Dops aportaram na quinta-feira, dia 10, ao mesmo tempo em que os estudantes também continuavam a desembarcar. O jornalista preocupou-se em nomear cada agente da repressão envolvido e em denunciar a prisão dos líderes estudantis, como Vladimir Palmeira, Luís Travassos, José Dirceu e Franklin Martins, e do seu amigo dos tempos do Amanhã, José Roberto Arantes. No pátio do presídio Tiradentes, o orgulho (sarcástico) dos investigadores do Dops pelo sucesso da 'colheita de tantos subversivos' foi registrado pelo jornal. Solto, Merlino fez das páginas da Folha da Tarde testemunhas de tudo que viu e uma longa análise do movimento estudantil no pós-1964."[247]

“Oportunismo mercadológico” - Armando Sartori

[OBSERVAÇÃO FEITA POR BEATRIZ KUSHNIR: Para que não reste qualquer dúvida, todos os dados abaixo são fruto de minha pesquisa de doutoramento e estão publicadas no livro Cães de guarda].


Na época mais difícil da ditadura, a Folha da Tarde foi o “diário oficial” da repressão. Hoje, a Folha de S. Paulo, o jornal diário mais importante do País, procura se apoiar num “mandato” baseado no mercado sabia de nada, assim como Caldeira, “a pessoa que tinha mais afinidade com esse setor do regime militar”. Ele também admite que a Folha da Tarde era dominada pela
direita. Sua dificuldade parece ser a de explicar porque seu pai colocou na direção da FT, em meados de 1969, o policial Antonio Aggio, que havia sido designado anteriormente, também por ele, para dirigir o diário Cidade de Santos, pertencente ao grupo.
Aggio chegou à FT com a missão de desmontar o projeto anterior, iniciado em agosto de 1967, quando Frias e Che Guevara. Não era nada, exceto oportunismo mercadológico”, diz. Miranda Jordão – ele mesmo um homem de esquerda – montou então uma redação com esse perfil. Dela participaram pessoas que se destacariam como militantes políticos e jornalistas da imprensa independente de oposição à ditadura. Passaram pela FT nesse período nomes como Arlindo Mungioli, Chico Caruso, Frei Betto, Lourenço Diaféria, Luís Clauset, Luís Edgar de Andrade, Luís
Merlino, Paulo Sandroni, Raimundo Pereira, Rose Nogueira e Tonico Ferreira, entre outros.
A experiência da FT “de esquerda” não durou muito, no entanto: o jornal não teve o sucesso comercial esperado e a situação política mudou – em dezembro de 1968, foi editado o AI-5 e teve início a fase mais dura da ditadura. Pouco tempo depois, Frias demitiu Jordão. E, em meados do ano seguinte, chamou Aggio, que desde 1962 pertencia aos quadros da Secretaria de Segurança Pública paulista (ele tornou-se assessor do delegado
Romeu Tuma, que por sua vez era diretamente subordinado ao delegado Sérgio Paranhos Fleury).
A partir do ingresso de Aggio na FT o desmonte da antiga redação se completou. Outros policiais também foram para lá e para a Agência Folha, um departamento criado por Miranda Jordão a pedido de Frias, na qual o próprio Aggio trabalhou após deixar a FT em 1984.
O resultado prático da mudança é que a FT se tornou, como escreveu Kushnir, uma espécie de “diário oficial” da Oban – a Operação Bandeirantes, organização repressiva semiclandestina financiada por empresários a partir de 1969. “O clima de delegacia policial resistiu 15 anos e o jornal ganhou o apelido de ser o de ´maior tiragem´ em São Paulo, não por causa da circulação, mas pelo número de tiras [policiais] que empregava”, disse ela em depoimento para o site Observatório da Imprensa (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br).
A historiadora menciona em seu trabalho a visão de Cláudio Abramo a respeito desse processo. Abramo, jornalista de esquerda, foi convidado por Frias para assumir o posto de secretário de redação da Folha de S. Paulo em 1965. Em seu livro A regra do jogo (Companhia das Letras, 1988), ele qualifica a Folha da Tarde dessa época como “o jornal mais sórdido do País”.
Freqüentemente, a FT agia para legitimar as barbaridades cometidas pelos órgãos de repressão, aceitando sem a menor crítica as versões apresentadas pelas forças de segurança. Chegou, segundo depoimento a Kushnir de Ivan Seixas, um militante do Movimento Revolucionário Caldeira decidiram relançar esse jornal que, criado em 1949, deixou de circular dez anos depois. O objetivo básico era concorrer com o Jornal da Tarde, irmão caçula do Estadão, criado pouco antes.
Experiência frustrada A historiadora Beatriz Kushnir, autora de Cães de guarda (Boitempo, 2004), pesquisou a trajetória da FT e ouviu, entre outros, o veterano jornalista Carlos Brickman. Ele diz, baseado em informação de Miranda Jordão, que Frias queria “fazer um jornal de esquerda” para “atingir o público de esquerda, os estudantes fascinados pelo Vietnã, pelo Cabo Anselmo, pelo Por quase dois anos, a Folha da Tarde foi um jornal de “esquerda” (ao lado, à esq., em outubro de 1968). Depois do AI-5, a redação foi entregue a jornalistas ligados à repressão (ao lado, à dir., edição de 5 de novembro de 1969). E veículos da Folha da Manhã foram atacados por militantes de grupos clandestinos de esquerda Tiradentes (MRT) preso em meados de abril de 1971, a publicar com horas de antecedência, a morte de seu pai, Joaquim de Andrade Seixas, da mesma organização, em circunstâncias inventadas pelos policiais.
A explicação de Otavinho para o que aconteceu com a FT é que com Miranda Jordão o jornal foi infiltrado por militantes de grupos clandestinos de esquerda. De fato, alguns jornalistas que trabalhavam na redação do jornal eram ligados a algumas dessas organizações. Depois, avalia ele, como reação a isso, o jornal foi ocupada pelos policiais. Já sobre o papel de Caldeira e Frias, os proprietários do jornal, e sobre a enorme diferença de tempo das “ocupações” – 22 meses e meio e cerca de 15 anos, respectivamente – ele nada diz.
As explicações para a FT ter assumido tal papel não são simples. Frias, empresário astuto, viu a possibilidade de explorar um mercado formado pelo público simpatizante da esquerda quando chamou Miranda Jordão. Depois, diante das dificuldades políticas e do fracasso comercial da FT, desmanchou o projeto “de esquerda” e montou um “de direita”. Segundo Cláudio Abramo, “de 1969 até 1972, a Folha atravessou um período negro, em que não havia espaço político algum no jornal”. “Na verdade, o jornal não tinha condições de resistir às pressões do governo, por isso não provocava. Foi uma política muito sábia que Frias aplicou ao jornal”, diz ele.
Nessa situação, Frias e Caldeira provavelmente resolveram não arriscar seu investimento. É bom lembrar que,ao contrário do Estadão e de outros veículos, os jornais da Folha da Manhã jamais sofreram censura prévia. Eles simplesmente obedeciam escrupulosamente às orientações transmitidas pelos censores por telefone, dizendo quais assuntos não podiam ser tratados.
A colaboração com o regime custou a Frias alguns disssabores. Militantes de organizações de esquerda atacaram e incendiaram dois ou três veículos que distribuíam a Folha. Além disso, ameaçaram Frias de morte. Isso fez com que, entre setembro de 1971 e fevereiro do ano seguinte, ele e sua família – que passou a receber proteção de agentes do DOPS – vivessem na sede do jornal.
Elogio ao governo Foi nessa época que Frias assinou pela primeira vez um editorial na Folha. Intitulado “Banditismo”, o texto publicado em 22 de setembro diz que, especialmente no Brasil da época, não havia “lugar para o terrorismo”, porque “um governo sério, responsável e com indiscutível apoio popular está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social”. Diz ainda que a subversão “está sendo definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da Imprensa”.
A astúcia de Frias se manifestaria poucos anos depois, já na fase da chamada abertura política, com a posse do general-presidente Ernesto Geisel, quando o milagre econômico se esgotara e, do ponto de vista político, o regime perdia sustentação rapidamente. A Folha era um jornal rentável, financeiramente saudável e bem equipado. Mas, do ponto de vista editorial e do prestígio político, estava muito abaixo de concorrentes como o Jornal do Brasil e o Estadão que, no entanto, enfrentavam problemas de sustentação.Para fazer frente a eles, Frias, com a ajuda de Abramo, remodelou editorialmente o jornal.
A reforma de então basicamente consistiu em criar a seção Tendências/Debates, à página três, onde intelectuais e políticos de diversas correntes de opinião se expressassem. Mas, entre Frias e Abramo havia diferenças importantes, como reconhece o empresário. “Ele tinha uma visão e eu outra. Ele achava que o jornal (...) tinha que ter uma linha, tinha que ser quase uma coisa doutrinária. (...) Eu não concordava com isso”.
Abramo acabou afastado do cargo em 1977, num episódio envolvendo o colunista Lourenço Diaféria, autor de um artigo considerado ofensivo pelos militares. Diaféria foi preso e a primeira reação do jornal foi publicar no dia seguinte o espaço de sua coluna em branco.
Um interlocutor freqüente de Frias, o general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar do governo Geisel e ligado ao ministro do Exército, general Sylvio Frota, telefonou para o empresário e o pressionou. Abramo foi substituído por Boris Casoy, um jornalista de idéias conservadoras, e o espaço da coluna de Diaféria foi ocupado por outros textos.
Segundo Frias, a pressão dos militares ligados a Frota foi muito forte. Mas, para o jornalista Mino Carta, um admirador de Abramo, houve uma “mínima pressão”. “Digo que foi ‘mínima pressão’ porque o senhor Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis na sucessão do general Geisel. A Folha apoiava o Frota. O Cláudio Abramo foi afastado por isso”.
Um dos argumentos que reforça essa tese é o de que cerca de um mês mais tarde Frota foi demitido do cargo, após tentar, sem sucesso, um golpe contra Geisel. Mas, mesmo diante da derrota política de Frota, Casoy foi mantido no posto. A ascensão de Otavinho ao comando da Folha de S. Paulo a partir de meados dos anos 1980 fez seu projeto editorial ganhar uma feição mais sofisticada. Mas, por trás dela pode-se enxergar a essência do pensamento de Frias, que sempre viu o jornal basicamente como um negócio. Já em 1984, quando assumiu o leme da Folha, Otavio disse numa entrevista à revista IstoÉ/Senhor: “(...) eu me pergunto se não é preferível um jornal que se locomove de acordo uma lógica de marketing, ou seja, de um compromisso com o seu público, a um jornal que se locomove com uma lógica fantástica, fantasiosa, quer dizer, com um compromisso, com um código, com um ideário, com uma doutrina qualquer que aquele jornal quer impor a ferro e fogo”. De certa forma, Otavinho descreveu os termos do debate entre seu pai e Abramo. E justificou o “mandato leitoral” que a Folha julga ter conquistado.

No Barão de Itararé: Mídia e Golpismo, Ontem e Hoje (1964-2024)

  Car@s; Deixo um debate muito bacana que participei.  Para assistir, click na imagem.