quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Caros amigos,
Caso você não tenham nada melhor para fazer, fica o convite
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Data: Sábado - 15/09/2007
Hora: 19:00h
Tema: Já raiou a liberdade: a censura do livro.
Convidados: Ana Arruda Callado, Beatriz Kushnir, Fernando Morais e Paulo César de Araújo
Local: Fórum de Debates - Pav. Verde




Eu, Ana Arruda Callado ePaulo César de Araújo
XIII Bienal do Livro - Rio
Fórum de debates: O Fórum de Debates é um espaço que reúne escritores, editores, intelectuais e jornalistas para a análise de grandes questões e a discussão de temas polêmicos e atuais. Sempre com a participação de um mediador, as mesas redondas contam ainda com a participação do público, que faz perguntas ao final da discussão.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Golpe militar de 1964, Guy de Almeida

Neste artigo, o autor traça um panorama informativo sobre o comportamento da imprensa brasileira durante os 20 anos de regime militar, sinalizando também as mudanças que, ao longo desse período, delinearam um novo perfil para o setor de comunicação. O autor põe ainda um foco sobre a imprensa mineira, refazendo a sua trajetória em alguns momentos desses anos de chumbo. [...] Em Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, Beatriz Kushnir, doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp, viria a apresentar documento interno do Jornal do Brasil, de dezembro de 1969, que instituíra um controle de qualidade sob o ponto de vista político, considerando que o exercício da liberdade de expressão tem que ser pautado pelo bom senso e pela prudência.
O jornal definira-se então como não sendo de situação, nem de oposição, lutando pela restauração da plenitude do regime democrático no Brasil, pelo retorno ao estado de direito, mas sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco ao governo. Entre as instruções, optar pela suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal, pois para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver.
Em uma avaliação na passagem dos 30 anos de edição do AI-5, o jornalista Jânio de Freitas consideraria que a imprensa, embora uma ou outra dissidência, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura, acentuando que, naqueles tempos e desde 64, o Jornal do Brasil fora o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime.
Consideração de Kushnir facilita o entendimento do título de seu livro: esses jornalistas colaboracionistas são aqui vistos como cães de guarda. À soleira, montaram guarda e fizeram autocensura no governo Médici e mesmo antes dele, colaborando para construir e difundir uma imagem irreal, inverídica do País. E seguiram o fluxo quando o tabuleiro do poder mudou a disposição das peças.
Para além da autocensura, o caso mais singular de colaboração com o regime de exceção parece ter sido o da Folha da Tarde, do grupo Folhas de S. Paulo. Relançado em 1967, aquele jornal manter-se-ia até parte de 1969 em linha inusitada para a época, tendo como membros da redação vários militantes de grupos clandestinos da resistência de esquerda ao regime, que, inclusive, chegariam a utilizar essa condição para as suas atividades políticas. Alguns meses após a edição do AI-5, concluir-se-ia essa etapa e o jornal passaria para o outro pólo, sob nova direção que o transformaria no jornal mais sórdido do País, segundo Cláudio Abramo, que fora diretor de redação da Folha de S. Paulo. Ademais do duro tratamento informativo aos movimentos armados contrários ao regime ditatorial, o jornal seria acusado de cessão de carros da empresa aos órgãos de repressão (DOI-CODI).
Esse disfarce possibilitaria, na compreensão dos militantes, que a polícia montasse emboscadas prendendo ativistas. Alguns desses carros seriam incendiados em represália, por movimentos de esquerda, em 1971.

Censurou, virou manchete

Revista FAPESP, Setembro 2001 - Edição 68

Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988 deve jogar um balde de água fria na idéia romântica de que os jornalistas da imprensa brasileira esgrimavam freqüentemente suas canetas contra a ditadura. Tese de doutorado de Beatriz Kushnir, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Cães de Guarda tem como cenário o período sombrio da ditadura no Brasil.
O motivo inicial do trabalho, patrocinado pela FAPESP, era entender a lógica interna da censura naqueles anos. Mas, no meio do caminho, a pesquisadora deparou com uma trilha paralela que ampliou sua análise."Havia a idéia quixotesca de que o jornalista, mesmo no período do pós-64, usou os jornais como uma frente de resistência, mas isso só ocorreu fortemente na imprensa alternativa, não na grande imprensa como um todo", enfatiza Beatriz. "Escrevendo nos jornais ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso, os jornalistas colaboraram com o sistema autoritário implementado naquele período."A pesquisadora iniciou esse doutorado em 1996.
A partir de 1997, ela começou a vasculhar a documentação do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e os arquivos de Brasília e da Academia Nacional de Polícia. Ela também fez pesquisas nos bancos de dados do jornalFolha de S. Paulo , na editora Abril e nos arquivos pessoais dos jornalistas Joel Silveira e Ana Maria Machado (Rádio JB).
Ela fez, ainda, entrevistas com jornalistas que passaram especificamente pela Folha da Tarde e com outros jornalistas de outros veículos. Também entrevistou o cineasta Roberto Farias, ex-presidente da Embrafilme e diretor do filmePra Frente Brasil e 11 censores - mulheres e homens de faixas etárias diferentes entre 1950 e 1986 que estão aposentados ou ainda são funcionários do Departamento de Polícia Federal (DPF).Vale ressaltar que, dos 11 censores entrevistados, apenas dois autorizaram a divulgação de seus nomes.
Solange Hernandes foi uma delas. Outro foi Corioleano de Loyola Cabral Fagundes, hoje pastor evangélico. Ele era o chefe doDepartamentode Censura de Diversões Públicas (DCDP) quando o então presidente José Sarney (1985-1990) vetou Je Vous Salue Marie , do cineasta Jean-Luc Godard, o último filme a ser censurado no país, e quando decretou-se o fim da censura.Tramas legislativasInicialmente, Beatriz mapeou a legislação censória no período republicano. Embora quase não tenha encontrado documentação sobre a censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no Estado Novo (1937-1945), ela procurou cruzar as semelhanças e as diferenças entre os dois períodos. "Tentei registrar o 'locus' institucional das agências de censura no aparelho de Estado, as tramas legislativas construídas no período republicano e as gerações dos técnicos de censura do (DCDP), além de toda a estratégia corporativa montada por este grupo para sobreviver após a decretação do fim da censura oficial em 1988", resume a pesquisadora.
Ao entrar no corte temporal escolhido para sua análise, Beatriz começou a encontrar nomes e alguns rostos dos censores. Foi ao começar as entrevistas que percebeu que poderia ampliar sua tese. Nessa fase, ela se deu conta de que os dez primeiros censores deslocados para Brasília, quando da transferência da capital, tinham o jornalismo como ocupação anterior, o que a fez ampliar a sua investigação. "Há duas explicações para isso; uma é que, nos concursos para técnico de censura, a única ocupação que se podia ter além de ser censor era a de jornalista", explica.Beatriz ressalta, ainda que, no Brasil, também havia a prática do duplo emprego dos jornalistas, um deles dentro de órgãos do governo.O Correio da Manhã , de acordo com ela, tentou quebrar essa prática nos anos 60, mas não obteve sucesso.
O escritor Carlos Heitor Cony conta isso com clareza em seu livro Quase Memória , sobre o pai que também era jornalista. "Daí dá para compreender como eles se tornaram censores. O problema é que depois eles continuaram censores", conclui a pesquisadora. Um dos jornalistas-censores que Beatriz aponta foi José Vieira Madeira. "Ele trabalhava noJornal do Brasil e, depois que deixou de ser censor, teve uma coluna em O Dia", conta.
Assim, em Cães de Guarda Beatriz foca sua análise em dois cenários e no diálogo que eles estabelecem entre si: os jornalistas que trocaram as redações pela burocracia e se tornaram técnicos de censura e os policiais de carreira que atuaram como jornalistas colaborando com o sistema repressivo a partir das redações. Para entender esse último grupo Beatriz redesenhou a trajetória da Folha da Tarde.
Sobre essa empresa do Grupo Folha da Manhã a pesquisadora dedica especial atenção a dois momentos da história do jornal: "Primeiro, o foco é em 1967, quando a FT renasceu, dirigido por Miranda Jordão (hoje, ele trabalha emO Dia ) para fazer frente ao Jornal da Tarde , do Grupo Estado, que acabara de ser lançado." Beatriz ressalta que era um momento em que a redação da FT estava repleta de bons jornalistas, ainda na ativa - como Rose Nogueira ou Tonico Ferreira, entre vários outros que ela entrevistou."Muitos deles eram simpatizantes de esquerda, engajados ou militantes que atuavam na luta armada, principalmente na Aliança Libertadora Nacional (ALN). Mas na noite da morte do líder Carlos Marighella, em novembro de 1969, começaram a cair militantes, muitos deles jornalistas daquela redação", diz Beatriz. "Finalmente, com o AI-5, MirandaJordão foi mandado embora e o jornal mudou completamente de perfil", conta.
No lugar de Jordão, de acordo com ela, foi colocado Aggio (Antonio Aggio Jr. atual assessor de imprensa do senador Romeu Tuma), que veio do jornal Cidade de Santos."Durante uma década e meia o jornal ficou sob o comando de policiais e muitos dos jornalistas que ali trabalharam também exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo", diz a professora. "Alguns achavam que o local mais lembrava uma delegacia e o jornal ganhou o apelido de ser o de 'maior tiragem', dado o número de tiras (policiais) que empregava." A família Frias só voltou a ter o nome no expediente do jornal em 1984. Otávio Frias Filho assumiu aFolha de S. Paulo , Aggio saiu da FT e entraram Carlos Brickman e Adilson Laranjeira. O jornal passou por uma reformulação e foi modernizado.
Em entrevista à Pesquisa FAPESP, Aggio contou sua versão dos fatos. "A reformulação da FT e o Projeto Folha de 1984 nada tiveram a ver com ideologia, mas com mercado", observa. O jornalista lembra que, ao sair da direção do jornal, Miranda Jordão permaneceu na empresa. "Quem ficou no seu lugar foi Antonio Pimenta Neves e, depois, o diretor foi Francisco de Célio César", diz. "Só depois é que fui chamado por Frias para dirigir a FT. Era o final de 1969 e ali permaneci até 1984." Aggio garante que o único policial que atuou na redação foi levado por ele da Cidade de Santos. "Era o Carlos Antonio Guimarães Sequeira, estudante de direito que queria ser jornalista e, ao mesmo tempo, prestou concurso para delegado", afirma. "Passou no concurso, mas como se revelou um excelente jornalista de Internacional o convidei para ser editor da FT."
Tortura
Durante sua investigação, a Beatriz conheceu Ivan Seixas, jornalista que foi militante da esquerda armada e que, com outros ex-militantes, acusa a FT daquele período negro de legalizar mortes em tortura. Seixas contou que, em abril de 1971, quando ele tinha 16 anos, fora preso com o pai depois da morte do empresário Henning Albert Boilesen, um dos milionários que financiaram a Operação Bandeirantes (Oban). O assassinato era atribuído ao Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), organização à qual os dois eram vinculados. Na prisão, pai e filho foram torturados.
À certa altura, de acordo com o depoimento do jornalista, os policiais foram passear com o jovem pela cidade. "Pelo rádio ele ouviu que os policiais receberam ordem de matá-lo; pararam em um boteco para tomar café e Ivan olhou pela janela para uma banca de jornal na qual uma manchete anunciava que seu pai fora morto ao ser capturado", conta ela. "Mas não era verdade, pois quando Ivan e os policiais voltaram para a prisão ele viu o pai ainda vivo e ainda sendo torturado", conta."Ao analisar essa e outras reportagens daqueles tempos percebi que elas refletem boa parcela da cobertura desses casos com o desfecho que interessava na época, ou seja, percebe-se que não eram um mero texto imposto, há um material jornalístico com o interesse de que se divulgue uma imagem da luta armada como subversivos e terroristas", diz.
"Por isso, a partir desse caso, procurei me aprofundar na história desse jornal para tentar entender o que foi e quem estava naquela redação."Esse estudo, de acordo com ela, toca sobretudo na questão da ética, mas principalmente se centra nas práticas do ofício jornalístico, nas normas a se seguir e principalmente nos seus momentos de quebra. "Nesse sentido, é importante não se esquecer que a imprensavende um serviço,ao se comprar o impresso adquire-se uma informação, portanto, negocia-se a veracidade de um relato", observa ela. "Assim, o que ocorreu na Folha da Tarde de 1969 a 1984 é algo muito relevante para pensar as normas que regem esse 'negócio' e no colaboracionismo da grande imprensa com o sistema."Resumindo o resultado de seu trabalho, que rendeu mais de 400 páginas, Beatriz considera que ao focar seu estudo na imprensa encontrou caminhos para refletir a relação entre jornalistas e historiadores na investigação e feitura da história do tempo presente.
"Devemos considerar que, passados 30 anos, os jornalistas recontam sua história se colocando como lhes interessa", diz a pesquisadora.
As surpresas e provável tema para polêmica não param por aí: "O que mais me surpreendeu foi detectar a auto-censura nas redações mesmo antes desse período e depois de 1988: o jornalista, conhecedor do veículo em que trabalha, seleciona o que pode ou não falar", acrescenta.

O CONTEXTO DA IMPRENSA DURANTE 1968

Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir (São Paulo, Boitempo Editorial, 2004)

Cap. 4 – O jornal de maior tiragem: a trajetória da Folha da Tarde

Os jornalistas
(...)“Quando Abramo chegou pela primeira vez à Folha de S. Paulo, em fins da década de 1960, o jornal se encontrava em um momento de afirmação. O ano de 1967 foi o período inicial das transformações da Folha, quando o grupo passou a investir em tecnologia, com a aquisição de máquinas offset, e no aumento da frota para acelerar a entrega de seus jornais. Essas alterações se iniciaram pelo jornal Cidade de Santos, em 8/7/1967, e chegaram à Folha de S. Paulo em 1º /1/1968. No meio do caminho, em 19/10/1967, contemplaram a Folha da Tarde, que renasceu a partir de então. A utilização do offset permitiu que a Folha da Tarde fosse o primeiro jornal paulistano a publicar fotos coloridas na primeira página.” [p. 226]
Por que a Folha da Tarde renasceu?
(...)“A Folha da Tarde renasceu em uma brecha ainda aberta em fins de 1967 e que logo se fechou. Se o jornal despontou sob o signo arrojado, foi perdendo esse fôlego no decorrer da caminhada. Para fazer frente ao Jornal da Tarde, tido por muitos como mais à esquerda, ou menos à direita, o Grupo Folha da Manhã, relançou a Folha da Tarde, com uma diretriz, naquele instante, de reportar a efervescência cultural e as manifestações estudantis a pleno vapor.” [p. 230](...)
“Nessa 'nova ordem mundial' [rock’n’roll, movimento feminista, guerra do Vietnã, Maio de 68 em Paris, Che Guevara] o JT e a Folha da Tarde, quando chegaram às bancas, encontraram no Brasil os festivais de música que revelaram Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Geraldo Vandré e muitos outros. O próprio Roberto Carlos, tido como mais 'enquadrado', mandava tudo para o inferno. No teatro, o Oficina encenava O rei da vela, e quatro peças de Plínio Marcos estavam em cartaz em São Paulo.(...)Mas também havia a efervescência contestatória dos movimentos estudantis, que cresciam em uma proporção geométrica, e os primeiro passos da luta armada. Assim, eram tempos em que as radicalizações engatinhavam.” [p. 231](...)“Essa proposta cumpriu seu papel por pouco mais de um ano e oito meses. No meio do caminho entre essa intenção e a realidade, tem-se a decretação do AI-5. Seguindo o desenho do novo tabuleiro político a partir de então, esse jornal passou a ter uma péssima fama e a sua redação foi completamente reformulada. Se no período até meados de 1969 tem-se a bonança, depois reinaram as trevas.” [p. 232]
Antes da tempestade, a bonança
(...)“No dia seguinte, 3 de outubro [1968], foram duas as manchetes da primeira página: os 12 mil estudantes reprimidos por soldados do Exército na Cidade do México e 'Maria Antônia volta a ferver', quando um aluno, José Guimarães, foi morto por membros do CCC [Comando de Caça aos Comunistas] e do Mackenzie. As fotos do confronto entre os alunos do Mackenzie e os da Filosofia da USP, que ganharam manchete também no dia 4 de outubro, foram feitas por Makiko Yshi, fotógrafa da Folha da Tarde e uma das primeiras mulheres nessa função. Nelas aparecem os estudantes do Mackenzie atirando na direção da fotógrafa. Recorrente na memória de seus colegas, essa seqüência de três fotos ilustra o clima que o jornal procurava captar nas ruas e mostrar." [p. 246](...)"Dez dias depois, em 14 de outubro, a chamada da primeira página dizia: 'UNE já pensa na sua volta'. Depois do cerco policial ao trigésimo congresso da entidade ocorrido dois dias antes, em Ibiúna, onde mais de setecentos estudantes foram presos, os libertos prometiam passeatas por todo o país. Frei Betto relatou que o setorista de polícia da Folha da Tarde informou-lhe que os estudantes seriam presos durante o congresso clandestino. Mas era impossível avisá-los. Assim, restou ver a cobertura do congresso proibido feita para o jornal por Luís Eduardo Merlino e Antônio Melo, que é rica em detalhes, nomes e fotos.(...)Solucionando o dilema, a Folha da Tarde ilustrou as prisões em Ibiúna de maneira detalhada. Como o jornal nascia com a proposta de cobrir os movimentos estudantis, Luís Eduardo Merlino esteve presente no congresso proibido da UNE para cobri-lo. Mesmo detido e transferido para o presídio Tiradentes, Merlino pôde, além de reportar os fatos, trazer mensagens dos companheiros presos.
Sua reportagem, de cinco páginas, relatava e mostrava a violência praticada no local, que aumentaria a partir de então por todo o país. Merlino contou sobre os jovens que chegavam de todas as partes e que tomaram de surpresa a pacata Ibiúna, que ficou sem comida. Os homens do Dops aportaram na quinta-feira, dia 10, ao mesmo tempo em que os estudantes também continuavam a desembarcar. O jornalista preocupou-se em nomear cada agente da repressão envolvido e em denunciar a prisão dos líderes estudantis, como Vladimir Palmeira, Luís Travassos, José Dirceu e Franklin Martins, e do seu amigo dos tempos do Amanhã, José Roberto Arantes. No pátio do presídio Tiradentes, o orgulho (sarcástico) dos investigadores do Dops pelo sucesso da 'colheita de tantos subversivos' foi registrado pelo jornal. Solto, Merlino fez das páginas da Folha da Tarde testemunhas de tudo que viu e uma longa análise do movimento estudantil no pós-1964."[247]

“Oportunismo mercadológico” - Armando Sartori

[OBSERVAÇÃO FEITA POR BEATRIZ KUSHNIR: Para que não reste qualquer dúvida, todos os dados abaixo são fruto de minha pesquisa de doutoramento e estão publicadas no livro Cães de guarda].


Na época mais difícil da ditadura, a Folha da Tarde foi o “diário oficial” da repressão. Hoje, a Folha de S. Paulo, o jornal diário mais importante do País, procura se apoiar num “mandato” baseado no mercado sabia de nada, assim como Caldeira, “a pessoa que tinha mais afinidade com esse setor do regime militar”. Ele também admite que a Folha da Tarde era dominada pela
direita. Sua dificuldade parece ser a de explicar porque seu pai colocou na direção da FT, em meados de 1969, o policial Antonio Aggio, que havia sido designado anteriormente, também por ele, para dirigir o diário Cidade de Santos, pertencente ao grupo.
Aggio chegou à FT com a missão de desmontar o projeto anterior, iniciado em agosto de 1967, quando Frias e Che Guevara. Não era nada, exceto oportunismo mercadológico”, diz. Miranda Jordão – ele mesmo um homem de esquerda – montou então uma redação com esse perfil. Dela participaram pessoas que se destacariam como militantes políticos e jornalistas da imprensa independente de oposição à ditadura. Passaram pela FT nesse período nomes como Arlindo Mungioli, Chico Caruso, Frei Betto, Lourenço Diaféria, Luís Clauset, Luís Edgar de Andrade, Luís
Merlino, Paulo Sandroni, Raimundo Pereira, Rose Nogueira e Tonico Ferreira, entre outros.
A experiência da FT “de esquerda” não durou muito, no entanto: o jornal não teve o sucesso comercial esperado e a situação política mudou – em dezembro de 1968, foi editado o AI-5 e teve início a fase mais dura da ditadura. Pouco tempo depois, Frias demitiu Jordão. E, em meados do ano seguinte, chamou Aggio, que desde 1962 pertencia aos quadros da Secretaria de Segurança Pública paulista (ele tornou-se assessor do delegado
Romeu Tuma, que por sua vez era diretamente subordinado ao delegado Sérgio Paranhos Fleury).
A partir do ingresso de Aggio na FT o desmonte da antiga redação se completou. Outros policiais também foram para lá e para a Agência Folha, um departamento criado por Miranda Jordão a pedido de Frias, na qual o próprio Aggio trabalhou após deixar a FT em 1984.
O resultado prático da mudança é que a FT se tornou, como escreveu Kushnir, uma espécie de “diário oficial” da Oban – a Operação Bandeirantes, organização repressiva semiclandestina financiada por empresários a partir de 1969. “O clima de delegacia policial resistiu 15 anos e o jornal ganhou o apelido de ser o de ´maior tiragem´ em São Paulo, não por causa da circulação, mas pelo número de tiras [policiais] que empregava”, disse ela em depoimento para o site Observatório da Imprensa (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br).
A historiadora menciona em seu trabalho a visão de Cláudio Abramo a respeito desse processo. Abramo, jornalista de esquerda, foi convidado por Frias para assumir o posto de secretário de redação da Folha de S. Paulo em 1965. Em seu livro A regra do jogo (Companhia das Letras, 1988), ele qualifica a Folha da Tarde dessa época como “o jornal mais sórdido do País”.
Freqüentemente, a FT agia para legitimar as barbaridades cometidas pelos órgãos de repressão, aceitando sem a menor crítica as versões apresentadas pelas forças de segurança. Chegou, segundo depoimento a Kushnir de Ivan Seixas, um militante do Movimento Revolucionário Caldeira decidiram relançar esse jornal que, criado em 1949, deixou de circular dez anos depois. O objetivo básico era concorrer com o Jornal da Tarde, irmão caçula do Estadão, criado pouco antes.
Experiência frustrada A historiadora Beatriz Kushnir, autora de Cães de guarda (Boitempo, 2004), pesquisou a trajetória da FT e ouviu, entre outros, o veterano jornalista Carlos Brickman. Ele diz, baseado em informação de Miranda Jordão, que Frias queria “fazer um jornal de esquerda” para “atingir o público de esquerda, os estudantes fascinados pelo Vietnã, pelo Cabo Anselmo, pelo Por quase dois anos, a Folha da Tarde foi um jornal de “esquerda” (ao lado, à esq., em outubro de 1968). Depois do AI-5, a redação foi entregue a jornalistas ligados à repressão (ao lado, à dir., edição de 5 de novembro de 1969). E veículos da Folha da Manhã foram atacados por militantes de grupos clandestinos de esquerda Tiradentes (MRT) preso em meados de abril de 1971, a publicar com horas de antecedência, a morte de seu pai, Joaquim de Andrade Seixas, da mesma organização, em circunstâncias inventadas pelos policiais.
A explicação de Otavinho para o que aconteceu com a FT é que com Miranda Jordão o jornal foi infiltrado por militantes de grupos clandestinos de esquerda. De fato, alguns jornalistas que trabalhavam na redação do jornal eram ligados a algumas dessas organizações. Depois, avalia ele, como reação a isso, o jornal foi ocupada pelos policiais. Já sobre o papel de Caldeira e Frias, os proprietários do jornal, e sobre a enorme diferença de tempo das “ocupações” – 22 meses e meio e cerca de 15 anos, respectivamente – ele nada diz.
As explicações para a FT ter assumido tal papel não são simples. Frias, empresário astuto, viu a possibilidade de explorar um mercado formado pelo público simpatizante da esquerda quando chamou Miranda Jordão. Depois, diante das dificuldades políticas e do fracasso comercial da FT, desmanchou o projeto “de esquerda” e montou um “de direita”. Segundo Cláudio Abramo, “de 1969 até 1972, a Folha atravessou um período negro, em que não havia espaço político algum no jornal”. “Na verdade, o jornal não tinha condições de resistir às pressões do governo, por isso não provocava. Foi uma política muito sábia que Frias aplicou ao jornal”, diz ele.
Nessa situação, Frias e Caldeira provavelmente resolveram não arriscar seu investimento. É bom lembrar que,ao contrário do Estadão e de outros veículos, os jornais da Folha da Manhã jamais sofreram censura prévia. Eles simplesmente obedeciam escrupulosamente às orientações transmitidas pelos censores por telefone, dizendo quais assuntos não podiam ser tratados.
A colaboração com o regime custou a Frias alguns disssabores. Militantes de organizações de esquerda atacaram e incendiaram dois ou três veículos que distribuíam a Folha. Além disso, ameaçaram Frias de morte. Isso fez com que, entre setembro de 1971 e fevereiro do ano seguinte, ele e sua família – que passou a receber proteção de agentes do DOPS – vivessem na sede do jornal.
Elogio ao governo Foi nessa época que Frias assinou pela primeira vez um editorial na Folha. Intitulado “Banditismo”, o texto publicado em 22 de setembro diz que, especialmente no Brasil da época, não havia “lugar para o terrorismo”, porque “um governo sério, responsável e com indiscutível apoio popular está levando o Brasil pelos seguros caminhos do desenvolvimento com justiça social”. Diz ainda que a subversão “está sendo definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da Imprensa”.
A astúcia de Frias se manifestaria poucos anos depois, já na fase da chamada abertura política, com a posse do general-presidente Ernesto Geisel, quando o milagre econômico se esgotara e, do ponto de vista político, o regime perdia sustentação rapidamente. A Folha era um jornal rentável, financeiramente saudável e bem equipado. Mas, do ponto de vista editorial e do prestígio político, estava muito abaixo de concorrentes como o Jornal do Brasil e o Estadão que, no entanto, enfrentavam problemas de sustentação.Para fazer frente a eles, Frias, com a ajuda de Abramo, remodelou editorialmente o jornal.
A reforma de então basicamente consistiu em criar a seção Tendências/Debates, à página três, onde intelectuais e políticos de diversas correntes de opinião se expressassem. Mas, entre Frias e Abramo havia diferenças importantes, como reconhece o empresário. “Ele tinha uma visão e eu outra. Ele achava que o jornal (...) tinha que ter uma linha, tinha que ser quase uma coisa doutrinária. (...) Eu não concordava com isso”.
Abramo acabou afastado do cargo em 1977, num episódio envolvendo o colunista Lourenço Diaféria, autor de um artigo considerado ofensivo pelos militares. Diaféria foi preso e a primeira reação do jornal foi publicar no dia seguinte o espaço de sua coluna em branco.
Um interlocutor freqüente de Frias, o general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar do governo Geisel e ligado ao ministro do Exército, general Sylvio Frota, telefonou para o empresário e o pressionou. Abramo foi substituído por Boris Casoy, um jornalista de idéias conservadoras, e o espaço da coluna de Diaféria foi ocupado por outros textos.
Segundo Frias, a pressão dos militares ligados a Frota foi muito forte. Mas, para o jornalista Mino Carta, um admirador de Abramo, houve uma “mínima pressão”. “Digo que foi ‘mínima pressão’ porque o senhor Frias estava envolvido na pior das candidaturas possíveis na sucessão do general Geisel. A Folha apoiava o Frota. O Cláudio Abramo foi afastado por isso”.
Um dos argumentos que reforça essa tese é o de que cerca de um mês mais tarde Frota foi demitido do cargo, após tentar, sem sucesso, um golpe contra Geisel. Mas, mesmo diante da derrota política de Frota, Casoy foi mantido no posto. A ascensão de Otavinho ao comando da Folha de S. Paulo a partir de meados dos anos 1980 fez seu projeto editorial ganhar uma feição mais sofisticada. Mas, por trás dela pode-se enxergar a essência do pensamento de Frias, que sempre viu o jornal basicamente como um negócio. Já em 1984, quando assumiu o leme da Folha, Otavio disse numa entrevista à revista IstoÉ/Senhor: “(...) eu me pergunto se não é preferível um jornal que se locomove de acordo uma lógica de marketing, ou seja, de um compromisso com o seu público, a um jornal que se locomove com uma lógica fantástica, fantasiosa, quer dizer, com um compromisso, com um código, com um ideário, com uma doutrina qualquer que aquele jornal quer impor a ferro e fogo”. De certa forma, Otavinho descreveu os termos do debate entre seu pai e Abramo. E justificou o “mandato leitoral” que a Folha julga ter conquistado.

domingo, 25 de março de 2007

Sem censura não quer dizer com liberdade

Beatriz Kushnir
Por poucos dias, em abril de 1975, esteve nas bancas de todo o país o número 300 d'O Pasquim onde há o editorial "Sem Censura", assinado por Millôr Fernandes. Nele, notifica-se que desde 24 de março o tablóide se encontrava livre da censura prévia. Após um telefonema do Dr. Romão, o último dos quase trinta censores que interviram no periódico em cinco anos, os jornalistas souberam que "agora a responsabilidade era de vocês". Sentença semelhante recebeu o então secretário de redação de O Estado de S. Paulo, Oliveiros S. Ferreira, no início de janeiro daquele mesmo ano.
"Eles ficaram do AI-5, em 13/12/1968, até o dia 3/1/1975, um dia antes do centenário do jornal. No dia 3, o chefe deles telefona e diz:
— Oliveiros, hoje nós não vamos aí.
— Eu disse: Mas, então, quem responde pelo jornal?
— Ah, isso é problema seu. Até logo.
E daí não vieram mais".
O editorial de Millôr chamava a atenção para o conceito de responsabilidade, que o censor advertia ao "devolver" aos jornalistas o controle pelo que saía impresso, e foi discutido – no sentido de polemizar e instaurar a discórdia –, pela redação. Para o chargista, esse rompimento repentino do pacto da censura embutia uma noção: deixar de intervir era uma concessão, um presente, que deveria ser pago "com responsabilidade". Sua aceitação era sinônimo de gratidão e cumprimento de um acordo "velado", ma non troppo. Esse "ser responsável", para o Dr. Romão, remetia a um saber: o que se podia publicar. Essa "liberdade concedida" vinculava-se a um teste: será que os anos de censura prévia vividos até então formaram, nas redações, jornalistas adestrados e, portanto, autocensurados?
No Pasquim o episódio gerou um embate entre as posições de Millôr, Dr. Romão e o restante da redação. Para os grupos de interesse que o chefe da censura à imprensa representava, o ato censório, naquele momento e apenas em alguns jornais, não mais precisava da figura presente do censor. Censurar já deveria, de tal modo, ser uma demanda introjetada, permanecendo dentro das cabeças dos "homens de jornal". Enquanto que para Millôr, a responsabilidade pelo texto impresso que chega às bancas, objurgado ou não, rasurado à caneta vermelha pelo dono do tablóide ou pelo censor do Estado, era sempre da equipe de redação. Por isso o chargista termina o editorial afirmando que "sem censura não quer dizer com liberdade". No desenrolar dos acontecimentos, o exemplar de número 300 foi apreendido nas bancas por determinação da Censura Federal e Millôr Fernandes deixou O Pasquim.
Quase três décadas separam esse episódio das reflexões do coronel Jarbas Passarinho. Em ambas, a noção de responsabilidade continua presente. Para o ex-ministro, os "vencedores" de 1964 perderam a batalha da mídia e atualmente recebem, da narrativa jornalística, uma imagem que não condiz com esse, segundo ele, triunfo. Exprimindo sua amargura e decepção, buscou entender o perfil que ficou dos executores do golpe de 1964. ("Crítica e autocrítica", O Estado de S. Paulo.17/7/2001, p. 2). Assim, afirma que perderam [...] progressivamente importantes aliados ao longo do tempo necessário para eliminar a atividade da guerra revolucionária, combater a corrupção e retomar o desenvolvimento? [e porque, ultrapassaram] o momento adequado para devolver [o governo] a um civil, em absoluta segurança. Durou demasiadamente a transição e acabou se dando com aparência de rendição.
Passarinho preocupa-se com a narrativa construída no presente, que, para ele, desvirtua aquela realidade. O coronel declara que a imprensa esteve livre até o Ato Institucional nº 5, de 13/12/1968, e que a desconstrução da vitória "dos Revolucionários" veio logo depois da instalação deste instrumento de terror e suas conseqüências. Nesse sentido, para o ex-ministro, a [...] imposição da censura, imperativo reclamado pela segurança do Estado numa guerra civil não declarada [e] feita, aliás, por censores amadores e por vezes desastrados [, trouxe uma] conseqüência [que] não podia ser outra. Importantes órgãos da mídia, que antes exigiram dos militares a deposição de João Goulart, romperam com os governos empenhados em vencer as guerrilhas e o terrorismo.
Nas "queixas" de Jarbas Passarinho, conclui-se que certamente o ex-ministro está preso às suas impressões daquele momento. Não é verdade que a imprensa esteve livre até o AI-5, e Millôr Fernandes protagoniza outro episódio que desfaz os castelos do coronel. Segundo a biografia do chargista, no ano de 1964 este se encontrava preparando o lançamento da revista Pif-Paf, que nasceu no magazine O Cruzeiro, onde Millôr fez uma seção com este título e assinando com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo. Compartilhada, por dezoito anos, com o lendário Péricles Maranhão, criador do "Amigo da onça", a coluna foi definida por Millôr como "uma 'elaborada combinação de grafismos malcomportados e tiradas demolidoras' [, onde] o cético Millôr levou a sério suas máximas 'livre pensar é só pensar' e 'divagar e sempre'"(Acerca da Pif-Paf, ver A Revista no Brasil, São Paulo, Abril, 2000, p. 221). Analisando a trajetória meteórica da revista, o chargista ironiza ao sublinhar que
"[...] em 1979, o serviço de informações do exército consideraria oficialmente como o início da imprensa alternativa no Brasil. Ainda bem, porque fecharam o jornal no oitavo número e eu fiquei devendo 21.000 cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais" (http://www.uol.com.br/millor/biografia/biografia.htm).
Por este panorama percebe-se que essa "liberdade toda" expressa pelo ex-ministro, não impediu que publicações como a Pif-Paf fechasse meses depois do golpe civil-militar de 1964. Mesmo tendo colaboradores como Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, Ziraldo, Jaguar e Fortuna, e vendendo 40 mil exemplares. Na charge que Fortuna fez para o penúltimo número da revista, de julho de 1964, vê-se um general fardado que usa sua espada para apontar um lápis. Na edição seguinte, a última, Millôr profetiza,
"[...] quem avisa amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que certos jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por suas próprias cabeças; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda a sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia" (A Revista no Brasil, 2000, p. 227).

quinta-feira, 22 de março de 2007

Canta essa aí pra mim

Beatriz Kushnir
Jornal do Brasil – Caderno B, Chico Buarque, 60 anos, 13/6/2004, p. B5.
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
(Apesar de você, Chico Buarque)
Por definição, o censor é o que pratica o ato censório, o crítico, o julgador, o funcionário público encarregado da revisão e dos cortes de obras literárias e artísticas, ou do exame dos meios de comunicação de massa (jornais, rádio, TV etc.). O seu papel também é apreendido como o de defensor, guardião, vigilante e zelador. No Brasil, de fins da década de 1980, percebeu-se como é difícil para alguns abrir mão desse “síndico” da moral e dos bons costumes. Para muitos o censor tem de ser personificado pelo Estado, senão não há serventia e eficácia. E esses muitos que desejam a continuidade da censura estavam tanto no aparelho de governo como na sociedade civil. É do pacto entre esses dois pólos que a necessidade e materialidade desse “defensor” se concretizou antes e se manteve por tanto tempo.
O fim da censura, decretado pela Constituição de 1988, não necessariamente refle o término dessa combinação. Já que o acordo, camaleonicamente se adaptou, e o ato censório se enquadrou. Mesmo sendo um serviço que demonstrou sua precariedade burocrática, pelo pouco número de censores frente ao volume de trabalho, só quatro anos depois da instauração da censura prévia, em 1970, é que se realizou o primeiro concurso para técnico de Censura. Justamente no governo Geisel, que pregava a abertura política e o fim da censura.
Existiu cerca de trezentos censores em todo o país, cujo perfil pode ser erroneamente percebido como apenas masculino. Todos eram funcionários concursados, policiais federais vinculados ao Departamento de Polícia Federal (DPF) e subordinados ao Ministério da Justiça. E para ser censor, dever-se-ia ser brasileiro; ter 18 anos completos; estar quite com as obrigações militares; estar em gozo dos direitos políticos; ter procedimento irrepreensível; apresentar diploma de conclusão de curso superior (Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Pedagogia ou Psicologia); passar no concurso; e ser aprovado no teste psicotécnico e no exame médico.
Figuras edificadas como chistosas, sublinhando uma falta de preparo cultural para o cargo, os censores, durante o processo de Abertura política, perceberam a marca da pecha que adquiriram. Assim, quando, em fevereiro de 1989, se estabeleceu a extinção do cargo de censor, cerca de 220 técnicos de Censura ainda estavam na ativa, espalhados por todos os cantos do país. Do dia para a noite, não tinham mais função nem espaço físico nos prédios do DPF. “Sentamos nos corredores”, lembra-se Carolina – censora carioca desde 1972, aposentada em 1995. Onde realocar esses funcionários federais era uma demanda a ser respondia.
Carolina, que atuou no Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Rio de Janeiro, contudo, tem certeza de que na letra Jorge Maravilha, os versos “você não gosta de mim, mas sua filha gosta” são uma mensagem aos censores. Já a censora Margarida rememorou que ao receberem as letras das músicas, ela e seu colegas de ofício cantavam alto uns para os outros tentando advinhar qualquer segunda intenção Meio improvisado e com pouca estrutura, a prática na Censura era a seguinte: ao chegar uma letra de autoria de Chico Buarque, os censores carimbavam como interditada.
Para driblar esse esquema, iniciado a partir da gravação de Apesar de você, interpretada pelas autoridades como uma ofensa ao presidente Médici, e depois de se ver cerceado pelas proibições a Calabar, o compositor cunhou um heterônimo batizado de Julinho da Adelaide, filho da favelada Adelaide de Oliveira. A estratégia deu resultado e músicas como Acorda amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro passaram sem grandes problemas pelo “pente-fino”, como também o livro Fazenda-modelo, recebido com reservas por parte da crítica. A ousadia continuou e Julinho da Adelaide concedeu, em setembro de 1974, uma entrevista ao jornalista Mário Prata, publicada no Última Hora.
De forma carimbada e oficial, foi só em 1/4/1975, que o chefe do Serviço de Censura na Guanabara, Wilson Queiroz Garcia, notificou internamente aos órgãos de Censura que Chico Buarque de Holanda estava sob censura. Cinco anos depois, no início de janeiro de 1980, o recém instalado e de pouca duração, Conselho Superior de Censura (CSC) findava uma proibição de quase uma década. Os maiores de 14 anos já poderiam assistir, sem cortes, ao musical Calabar, cinco vezes proibido pelo general Antônio Bandeira, diretor-geral do DPF nos anos 1970.
O medo de que Brasília – personificado na figura de Bandeira – não gostasse de qualquer liberação aterrorizava os censores. O jornalista Raimundo Pereira, na época no Opinião, lembrou que “um funcionário da censura do Rio [ameaçou] impedir a saída de uma edição do [jornal] porque nós havíamos acrescentado o nome do Secretário Geral da ONU, Kurt Waldheim, a [um] trecho de uma matéria já censurada em Brasília. A justificativa do censor foi a de que a censura ao jornal foi deslocada para a agência de Brasília, porque os superiores não gostavam do modo que esta era realizada no Rio, tida como muito flexível. De forma cabal, o censor inquiriu: “vocês não vivem reclamando que eles cortam o nome do Chico Buarque da autoria de uma música? Como vou lá saber se os homens lá em cima não têm implicância com esse tal de Kurt Waldheim?”
Bem distante deste paradoxo, o final da década de 1980 impõe um outro desenho a questão. Os censores, entretanto, não esperaram que alguém definisse o término de suas atividades. Antes que o “enfim, acabou” fosse decretado e que, como uma corporação, perdessem alguma vantagem funcional, resolveram agir. O objetivo desse grupo era manter o DCDP subordinado ao DPF contra a vontade do penúltimo chefe da Censura e censor de carreira, Coriolano Loyola de Cabral Fagundes. Ou, caso o órgão controlador da censura deixasse de existir, que eles permanecessem funcionários do DPF.
O temor era que perdessem as vantagens financeiras que a função lhes garantia. Já que, o censor federal não era apenas funcionário público. Como policial federal, possui um status comparável aos funcionários da Receita Federal e do Corpo Diplomático, e a perda de gratificações pela função policial poderia reduzir à metade os seus salários: Cz$ 18 mil em média podendo chegar até Cz$ 40 mil juízo ou fora dele, para a defesa dos direitos e interesses gerais da classe, quer sejam eles coletivos ou individuais”. Uma resposta às novas diretrizes e pessoas que comandavam o Serviço de Censura a partir da Nova República.
Quatro meses depois, em janeiro de 1987, a primeira vitória da “linha dura” da Censura: Coriolano Fagundes foi exonerado e, assim, recebiam o apoio do diretor-geral da PF, Romeu Tuma, e do ministro da Justiça, Paulo Brossard. Buscando garantir, pela lei e pelo lobby político, sua manutenção dentro do máscara negra, o prédio sede do DPF, o último diretor da DCDP, o censor de carreira Eustáquio Mesquita, declarava que “ser censor nos realiza”.
O primeiro presidente da Anacen, o censor Arésio Teixeira, era vinculado a “dona da tesoura” do Serviço de Censura em São Paulo, quando Armando Falcão foi ministro da Justiça do governo Geisel, e diretora de Censura de 1981 a 1985, na gestão do ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, no governo do general João Figueiredo.
Solange Hernandez, a Solange Tesourinha, era a legítima representante da “linha dura” e a frente do DCDP, desaprovou 2.517 letras de música, 173 filmes inteiros, 42 peças de teatro e 87 capítulos de novelas. Imaginada de maneira jocosa pelo músico Leo Jaime, a censora tornou-se o símbolo de uma interdição estatal conservadora, arcaica e, principalmente, violenta. Tesourinha e seu grupo demonstraram-se fortes, influentes e poderosos mesmo com a extinção de seus cargos e funções. Suas estratégias de articulações garantiram-lhes poder.
Uma explicação possível para essa eficácia está nos versos de Leo Jaime na música Solange. Demonstrando o espírito de uma cultura política intervencionista e autoritária, interiorizada na mentalidade de uma boa parte da população que dizia “não” aos queriam suprimir o “não”. Como um grito para romper as camadas de tantas negativas, o cantor esbraveja

Eu tinha tanto pra te dizer
Metade eu tive que esquecer
E, quando eu tento escrever,
Sua imagem vem me interromper
(...)
Eu penso que vai tudo bem
E você vem me reprovar
(...)
Seu nome está em cada lugar
(...)
Você é bem capaz de achar
Que o que eu mais gosto de fazer
Talvez só dê pra liberar
Com cortes pra depois do altar
==========
Nota:[1] Em janeiro de 1987, o salário mínimo valia Cz$ 964,80 (novecentos e sessenta e quatro cruzados e oitenta centavos). Os censores, portanto, recebiam de 18,65 a 41,45 salários mínimos. Atualmente ninguém pode ganhar mais que o presidente da República, que recebe um pouco mais R$ 12 mil (doze mil reais). Alguns censores que entrevistei esbravejaram. Poderiam ter salários (na ativa ou aposentados) de até R$ 20 mil (vinte mil reais), cerca de 111 vezes o salário mínimo, que, em outubro de 2001, era de R$ 180,00. Mas tinham de se contentar com o teto máximo permitido.

domingo, 18 de março de 2007

Nova versão das relações entre jornalistas e a censura

Pesquisadora denuncia o apoio à repressão durante a ditadura
Paula Barcellos, JB 20/3/04

Quando defendeu sua tese de doutorado em História, na Unicamp, em 2001, a atual coordenadora da rede municipal de teatros do Rio, Beatriz Kushnir, despertou a curiosidade, a fúria e os aplausos de muitos jornalistas que estavam em plena atividade durante o regime militar. Com o título Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 - agora publicado pela Boitempo (408 páginas, sem preço definido) -, Beatriz trouxe à tona uma face do jornalismo, que na maioria das vezes costuma ser mascarada: sua colaboração com o Estado nos anos de repressão. Para chegar a essa constatação, a historiadora inverteu a estratégia do jogo: em vez de partir dos jornalistas para chegar aos censores, foi aos censores para chegar aos jornalistas. Daí, surgiu uma surpresa: os primeiros 10 censores do Departamento de Censura de Diversões Públicas, no período estudado por Beatriz, eram jornalistas.
- O objetivo é iluminar um território sombrio e desconfortável: a existência de jornalistas que, ainda nas redações, foram censores federais e policiais - conta.
Um dos entrevistados para a pesquisa foi o jornalista Antônio Aggio Jr., que, no período da censura, trabalhava na Folha da Tarde . Apesar de, a princípio, Aggio ajudar Beatriz em sua tese, ele não poupou críticas ao ler o trabalho pronto: ''Para alicerçar sua tese na parte relativa à Folha da Tarde, Beatriz vale-se de um argumento mentiroso e calunioso. Estou providenciando sua responsabilização perante a justiça'', disparou em seu artigo publicado no site do Observatório da Imprensa.. Polêmicas a parte, a historiadora Beatriz Kushnir, com sua ousada publicação, está contribuindo para uma releitura crítica dos 40 anos do golpe militar.

- Ao contrário da maioria dos estudos sobre a imprensa durante a ditadura militar, em que o enfoque é a forma pela qual os jornalistas reagiram à censura, na sua tese você faz o caminho inverso: parte dos censores para chegar aos jornalistas. O que levou a essa opção?

- Ao iniciar minhas pesquisas de doutoramento em História, na Unicamp, financiada pela Fapesp, fiquei surpresa ao constatar que os primeiros 10 censores do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), quando da transferência da capital federal para Brasília, eram jornalistas. E todo pesquisador sabe que um ''achado'' ocorre quando uma constatação foge às regras que havíamos apreendido como ''conhecidas''. Mas tal ''descoberta'', como outras que o livro aponta, não são facilmente assimiláveis por uma memória política que estabeleceu para o país um outro patamar, muitas vezes distante do percorrido pelo regime civil-militar do pós-1964, por exemplo. Tentando compreender esse achado, verifiquei que os editais dos concursos públicos para censor federal, quando traçavam o perfil do candidato, admitiam uma única atividade concomitante: ser jornalista. Esse fato aguçou ainda mais a minha curiosidade. Até porque, creio ser importante, em um trabalho na área das Ciências Sociais, podermos remar contra a maré e trazermos à tona ponderações e perspectivas inovadoras, olhares que revelem, desvendem. Esses nos obrigam a rearrumar o tabuleiro do jogo. E isso, para mim, é fundamental.

- Como você explica o fato de alguns profissionais da imprensa colaborarem com a repressão?

- É preciso compreender, por um lado, a instabilidade profissional dos homens e mulheres de jornal e a necessidade que tinham de outros empregos, muitas vezes públicos, que garantir a sobrevivência. Estar no aparelho de Estado ou ser empregado num jornal, uma empresa, confere regras, e isso é uma constatação que não pode ser desprezada. A República brasileira é também um período de longas intervenções ditatoriais. Temos mais momentos de exceção do que de democracia. A censura aos jornais, portanto, não se iniciou no pós-1964, ou no pós-1968. Ela esteve presente na República Velha, no Estado Novo e também em períodos tidos como democráticos. Gosto muito de uma frase do Millôr, no famoso número 300 do Pasquim, quando os censores deixam a redação. Ele diz: ''Sem censura não quer dizer com liberdade''. Quantos de nós fomos educados para viver ''com liberdade''?

- Como tal colaboração com a ditadura refletiu na sociedade?
- O ato de colaborar com a ditadura nos impõe refletir, criticamente, a idéia da sociedade brasileira como ''democrática por natureza'', e para tal são muito oportunas as ponderações feitas por Daniel Aarão Reis Filho acerca do processo de anistia e de oposição ao regime civil-militar. Durante esse período, meio ''fim de festa'', parcelas da sociedade brasileira buscaram se divorciar da ditadura, optando por manifestações tidas como de esquerda. Desejavam demarcar as ''fundas e autênticas raízes históricas'' do país. Para eles, a ditadura era um passado e um pesadelo momentâneo, que precisava ser exorcizado. Como demônios e fenômenos externos, a idéia era que a sociedade não tinha, e nunca teve, nada a ver com a ditadura. Ficam, então, questões difíceis de responder: por que a ditadura durou tanto tempo e não foi simplesmente repudiada? E por que foi aprovada uma anistia recíproca?

- Você se decepcionou com a imprensa?

- Não sei se decepção é o termo mais correto. Creio que hoje compreendo que a imprensa é uma empresa de cunho privado que vende um serviço de utilidade pública. Mas, como destacou Cláudio Abramo, o jornal tem um dono e nele só sai o que o patrão quer. Tendo isso em mente, passa-se a ler, de forma mais realista, o que está impresso. Sabendo sempre que, no dia seguinte, o papel do jornal vai embrulhar peixe nas feiras. Mas o que nele está impresso pode ter mudado vidas de modo radical. Algo é fundamental não se perder: quem o compra deposita neste ato um pacto de confiabilidade no que está escrito. Quebrar esse acordo gera uma ambigüidade na apreensão do real que permite um sem-número de considerações. Assim, muitos pagaram pelo papel-jornal para saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso nessas páginas.

- Dessa forma, o jornalismo acaba sendo fonte da história. Então, como se dá a relação entre imprensa e história, jornalista e historiador?

- Os historiadores que vêm trabalhando com o contemporâneo fazem o que se denominou ''história do tempo presente''. No encontro de jornalistas e outros intelectuais para uma atuação política, abriu-se um espaço que flexibilizou lugares e atuações profissionais. Não se contentando em registrar apenas os ecos da atualidade, os jornalistas buscaram um olhar crítico sobre o material produzido, exercitando-se em uma história do imediato. Esse encontro, esperamos, deve se dar para além das disputas, respeitando as especificidades de cada oficio. Assim, não devemos cair na armadilha que amarra o historiador às considerações para a posteridade, enquanto o jornalista buscaria vencer a angústia do esquecimento a cada jornal que no dia seguinte está no lixo. O grande encontro possível desses sujeitos das letras permite que o tempo presente seja uma não-história do instante. E nada mais importante do que a narrativa jornalística e a reflexão histórica sobre um período, por diversos ângulos, para que isto possa acontecer.

- Logo após a defesa da sua tese, em 2001, parte da imprensa reagiu muito mal, inclusive jornalistas que você entrevistou para o trabalho. Antônio Aggio Jr. chegou a afirmar que sua tese seria mentirosa e sensacionalista. Como justifica essa reação?

- Durante as reflexões sobre os 30 anos do AI-5, em 1998, o jornalista Jânio de Freitas fez uma análise, em meu juízo, extremamente reveladora, comentando que muitos dos jornalistas que estavam nas redações em 1968 ainda lá permaneciam em 1998. Assim, como o panorama mudou, discursos sobre trajetórias também querem se adaptar a esses ''novos momentos''. Isto porque muitos servidores foram aposentados, outros construíram para si uma imagem positiva e até mesmo heróica, distanciando-se do que haviam feito. Outros tantos se readaptaram e estão na mídia como sempre. Um retrato que exponha e desfoque esse esforço de adaptação nunca poderá ser bem aceito.
- De certa maneira, reações como a de Aggio não seriam também uma forma de censura?
- Sinceramente, prefiro não polemizar. Meu trabalho se pretende muito mais amplo do que se debruçar apenas sobre trajetórias individuais. Não quero que um esforço de cinco anos e meio, extremamente rico para mim, seja perdido e apague o empenho de repensar as outras possibilidades de apreender a relação imprensa/Estado.

- Passados 40 anos do golpe militar, como você analisa a imprensa hoje? Ainda persiste algum tipo de censura?

- A censura, travestida de defesa da moral e dos bons costumes, é para mim sempre política, e se calca, para efetivar suas ações, em pressões econômicas. Por ser uma empresa privada que visa o lucro, o órgão de imprensa tende a perder suas funções básicas: fiscalizar o poder, buscar a verdade dos fatos e fomentar o espírito crítico. Atualmente, temos acesso a muita informação, às vezes em excesso e sem proveito, mas adquirir conhecimento é parte de outro procedimento. Talvez a censura contemporânea seja essa enxurrada de dados e a ausência de conteúdo. [http://www.jb.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2004/03/19/joride20040319005.html ]

A censura por dentro


Eduardo Brito, de Brasília
Uma visão diferente da censura, mostrada por dentro, é o que pretende o recém-lançado Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, de Beatriz Kushnir, doutora em História Social. Não por acaso sua chegada às livrarias, editado pela Boitempo, coincidiu com os 40 anos do golpe de 1964. Consiste em um aprofundamento e sistematização de Perfis Cruzados, de 2002, em que a autora mostrou a freqüência com que, em especial no Estado Novo, profissionais da imprensa terminavam por colaborar com a ação da censura, seja transmitindo informações, seja trabalhando diretamente como censor.
Cães de Guarda: Jornalistas e Censores apóia-se em uma pesquisa intensiva sobre as relações entre o regime militar e os órgãos de imprensa, da censura à colaboração. De forma didática, Beatriz Kushnir examina a estruturação da censura, suas bases jurídicas e as diretrizes por ela adotada, baseando-se em extensa pesquisa documental, além de entrevistas, inclusive com onze censores. Assim ela mostra como se organizou a censura e os diferentes matizes que adotou. Para usar expressão cara a um dos ideólogos do regime, o general Golbery do Couto e Silva, a censura passou por sístoles e diástoles, ou seja, por períodos mais duros e mais brandos – que curiosamente não coincidiam com os endurecimentos e abrandamentos do regime. Por exemplo, justamente quando a abertura do presidente Ernesto Geisel ensaiava os primeiros passos houve um endurecimento brusco da censura, então sob o comando do general Antonio Bandeira.
Nem sempre é fácil acompanhar a linha de raciocínio de Beatriz Kushnir, que vai e volta no tempo. Mas sua pesquisa histórica não pode ser menosprezada. Mostra-se, por exemplo, como na década de 20 o governo federal tornou a censura uma atividade próspera, que trazia rendimentos para os seus funcionários – um censor ganhava 8,4 contos de réis, uma quantia elevada para a época – graças aos emolumentos cobrados aos empresários dos setores a serem a ela submetidos.
Diferentemente de outros trabalhos sobre a censura, Cães de Guarda não constitui um apanhado de historinhas que acabam por traçar dela um retrato meio ridículo, como algo de truculento mas trapalhão, que mistura violência e ineficiência. Ao contrário, mostra que a repressão à liberdade de expressão freqüentemente conseguiu cumprir seus objetivos: temas foram banidos da mídia, uma enorme quantidade de informações deixou de chegar aos cidadãos, obras artísticas viram-se mutiladas, tudo como queriam os gestores do processo.
O livro mostra também como a censura sempre caminhou lado a lado com o endurecimento ou o abrandamento de regimes. À decretação do Estado Novo seguiu-se não apenas a institucionalização de um processo repressivo já adotado com base na legislação de exceção que dois anos antes ultrapassara a semiliberal Constituição de 1934, como a adoção de um sistema profissional destinado a aprofundá-lo. Seu principal instrumento, embora não o único, foi o famoso DIP. Quando veio a redemocratização de 1945, o DIP fora transformado em Departamento Nacional de Informações, extinto algum tempo depois – mas a essa altura já surgira, de uma reformulação da Polícia Civil do Distrito Federal, o Departamento Federal de Segurança Pública, que herdaria funções e funcionários de ambos. Em plena vigência da nova Constituição, uma das mais liberais que o Brasil teve, o Decreto nº 24.011, de maio de 1948, determinava que o ministro da Justiça poderia autorizar “a assistência aos trabalhos de censura prévia”. Quem faria essa assistência? Claro, o Departamento Federal de Segurança Pública, por meio do Serviço de Censura de Diversões Públicas, estabelecido dois anos antes. Os funcionários de um e de outro foram com freqüência reaproveitados. Alguns deles sobreviveriam para exercer suas funções após 1964.
Há capítulos especiais para as normas internas da Censura. Contêm pérolas como as instruções que se transmitiam aos veículos nos anos 70:
- Seios, apenas mostrar um;
- Genitália, nem à sombra;
- Nádegas, só se diluídas com recursos técnicos;
- Palavrão, só se estiver apropriado ao contexto.
Também há uma coleção de bilhetinhos da censura, com uma revelação. Normalmente são atribuídos ao período que se seguiu ao Ato Institucional nº 5, quando circularam como prática rotineira. No entanto, em junho de 1968, seis meses antes do AI-5, o general Luiz Carlos Reis de Freitas, superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, inaugurava a prática, dirigindo-se especificamente ao Correio da Manhã, para proibir noticiário sobre manifestações estudantis. Cães de Guarda faz mais do que relacionar os bilhetinhos – mostra como eram produzidos, distribuídos e recebidos.
Ao se mostrar a censura por dentro, também se tem uma nova série de casos que seriam divertidos se não revelassem uma realidade sombria. Por exemplo, a aparição de um certo Movimento Auxiliar de Recuperação da Juventude Brasileira, que enviou ao Ministério da Educação, em 1972, um apelo para enrijecer a censura. O Ministério, por meio de sua Divisão de Segurança e Informações, fez questão de notificar o Serviço de Censura de Diversões Públicas das propostas do grupo. Ou ainda de um abaixo-assinado enviado em 1970 ao Ministério da Justiça cobrando “medidas governamentais contra o abuso de piadas de mau gosto que estariam sendo feitas sobre portugueses em programas de rádio e televisão”. O secretário particular do ministro da Justiça expediu o abaixo-assinado ao Serviço de Censura – cujo chefe reagiu com a proposta de que seus subordinados vetassem qualquer programa que apresentasse esse risco.
Embora a autora também relate episódios ilustrativos das difíceis manobras dos veículos que tentavam resistir ou burlar os censores e dedique uma parte significativa do livro a examinar a postura de veículos que em sua opinião se excederam ao colaborar com a censura, sua maior contribuição é mesmo mostrar os bastidores da repressão. Cães de Guarda traça um perfil dos censores e do seu trabalho, assim como de sua visão de mundo, que permanecia inédita. Contribui assim, em primeiro lugar, para que se conheça melhor a evolução histórica – tanto do ponto de vista legislativo quanto de um exame de seus quadros – da censura no Brasil. E vale, não só para quem não viveu os tempos da mais recente onda repressiva, mas também para quem já exercia atividades na mídia durante esse tempo, para que se compreenda a lógica interna do sistema de censura e de seus integrantes.
Cães de Guarda serve, por fim, para mostrar como é difícil cortar a cabeça da hidra. Assim como a censura fora e voltara por muitas vezes antes, mantendo-se sua estrutura adormecida entre a ida e o retorno, não faz tanto tempo que um ministro da Justiça, Fernando Lyra, declarou que ela desaparecera do Brasil para sempre. Foi no final de 1985. Meses depois, em fevereiro de 1986, atendendo oficialmente ao pedido de uma entidade de donas de casa de Belo Horizonte, o governo brasileiro proibia a exibição do filme Je Vous Salue Marie, do cineasta francês Jean Luc Godard – e recebeu, pela decisão elogios de um antecessor de Lyra, o ex-ministro Armando Falcão, o mesmo que, anos antes, proibira a exibição do Balé Bolshoi no Brasil.
[www.anj.org.br/jornalanj/index.php?q=node/558]

O preço da conivência: tese aponta nível de colaboracionismo de jornalistas com a ditadura militar

Jornal da Unicamp - 20 a 26 de maio de 2002
Carlos Lemes Pereira
A fogueira das vaidades em torno da qual ainda dança uma considerável parcela da tribo dos jornalistas brasileiros está ameaçada por uma tempestade: Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, tese de doutorado da historiadora carioca Beatriz Kushnir, 35 anos, aprovada com louvor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em outubro do ano passado, desmistifica o dogma segundo o qual as redações dos jornais foram, invariavelmente, barricadas contra a ditadura militar e que a maioria de seus profissionais esteve na linha de frente da luta pelos direitos humanos – inclusive a própria liberdade de expressão.
“Eu mesma acreditava nesse mito, tão cultuado na nossa mídia. Tanto que a pretensão inicial do meu trabalho se limitava a dissecar o modus operandi da censura naqueles anos de exceção. Mas, no aprofundamento das pesquisas, deparei com o elevado nível de colaboracionismo das redações da época com o regime”, conta Beatriz, sem disfarçar o tom de desencanto. Contudo, uma quebra de ilusão até saudável, em se tratando de um país que está sempre ante a desconfortável necessidade de retificar os registros de seu passado.
Não que, de forma absoluta, tivesse faltado heroísmo no embate jornalismo versus ditadura. Porém, recolocando a questão, o trabalho da historiadora situa os bolsões de resistência na chamada imprensa alternativa. Ou “nanica”. Na grande imprensa – os “jornalões”, como ficaram pejorativamente rotulados – a submissão (ou mesmo adesão ideológica, por que não?) era tão descarada que raros foram os veículos que precisaram contar com a presença full time de um censor nas redações. Inclusive, a primeira formação profissional de vários censores era exatamente a de jornalista.
Igualmente impactante para Beatriz foi a descoberta de policiais de carreira que eram destacados para trabalhar como jornalistas. Verdadeiros “cães de guarda” da ditadura soltos no burburinho das redações. Assim, graças a essa multiplicidade de recursos, censurava-se tanto pelo estilo brucutu, do corte daquilo que “não podia ser escrito”, quanto pelo estratagema mais sutil do próprio ato de escrever. Escritura da conveniência dos déspotas de plantão, lógico.
Financiada pela Fapesp com uma bolsa de quatro anos e meio, a pesquisadora começou o doutorado em 1996. Embora os capítulos iniciais tratem da censura desde a Proclamação da República, o principal caminho das pedras foi a vasta documentação do Departamento de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal, no Arquivo Nacional, em Brasília. Foi guiada por essa papelada que a historiadora chegou aos 11 censores que forneceram as entrevistas imprescindíveis para que um trabalho acadêmico acumulasse tamanho teor explosivo.
Primeiro susto – “Assim que comecei a investigar quem eram os lendários censores da época, já levei o susto de esbarrar, de cara, com dez jornalistas, somente no primeiro grupo de nomes levantados”, lembra Beatriz. Do time dos 11 entrevistados, pouquíssimos autorizaram a divulgação de suas identidades reais. A maior parte é designada por nomes fictícios. Explica-se: muitos ainda são funcionários de órgãos da segurança pública, ou – o que é mais embaraçoso – estão devidamente “aclimatados” no meio jornalístico.
Um dos que não se incomodaram em ter o nome verdadeiro revelado é Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, atualmente pastor evangélico. No governo Sarney (1985/1990), Fagundes chefiava o Departamento de Censura de Diversões Públicas e acabou ocupando um lugar no epicentro do episódio que precipitou a derrocada da censura: o veto ao filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard. Na esteira da polêmica que o caso suscitou, com manifestações de protesto pipocando por toda parte, o então ministro da Justiça, Fernando Lyra, viu seu cargo escoar pelo ralo que começava a tragar o entulho autoritário de um regime que já não mais se sustentava.
Digestão difícil


Com revelações bombásticas, mas sempre rigorosamente embasadas na pesquisa científica, é de se indagar por que as 437 páginas da tese de Beatriz Kushnir ainda não atraíram o interesse do mercado editorial. Ela não descarta a possibilidade de existirem barreiras de ordem corporativistas para que todo esse vespeiro se amplie na forma de um livro comercial. “Se o parecista de uma editora for um ‘homem de jornal’, será difícil digerir a tese”. E cita uma personalidade de peso do próprio meio jornalístico: “Como refletiu Jânio de Freitas, num artigo na Folha de S.Paulo, por ocasião dos 30 anos do AI-5, os jornalistas é que ainda contam suas histórias”. Beatriz adianta que já cogita em procurar editoras universitárias para editar Cães de guarda. Nem sempre as portas das editoras privadas se fecharam para a historiadora, entretanto. A Imago publicou recentemente Perfis Cruzados – trajetórias e militância política no Brasil, no qual Beatriz reúne artigos de pesquisadores, militantes e – sim! – jornalistas, numa reconstituição das várias frentes de resistência que a ditadura enfrentou.

No Barão de Itararé: Mídia e Golpismo, Ontem e Hoje (1964-2024)

  Car@s; Deixo um debate muito bacana que participei.  Para assistir, click na imagem.