quinta-feira, 23 de abril de 2009

A estreita união entre imprensa e ditadura

Portal Vermelho
22 DE ABRIL DE 2009 - 17h29


Beatriz Kushnir: O conjunto da grande mídia ignorou o lançamento de Cães de Guarda — Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo Editorial, 2004). Não era para menos. O livro da historiadora Beatriz Kushnir tocava num dos pontos mais nebulosos da história do Brasil — a relação colaboracionista entre a imprensa e o regime militar (1964-1985). Em entrevista por e-mail ao Vermelho, Beatriz conta a gênese e as descobertas de Cães de Guarda, com destaque para o engajado apoio da Folha da Tarde à ditadura.

Por André Cintra


Beatriz: ''Conexões permissivas''

Vermelho: A Boitempo encaminhou Cães de Guarda a muitos jornalistas que solicitaram exemplares — inclusive profissionais da Folha de S.Paulo. Quase nada, porém, foi publicado sobre o livro. A que você atribui tamanho veto?
BK: Os jornais são empresas de comunicação — estruturas privadas que vendem um bem público: a notícia. Mas nelas só sai o que o dono quer, como dizia o jornalista Cláudio Abramo.

Vemelho: Sobre o tema da censura à imprensa durante o regime militar, já existem dezenas de trabalhos acadêmicos que viraram livros. O que Cães de Guarda acrescenta a esses estudos? Quais foram as principais descobertas e conclusões de sua pesquisa?
BK: O diferencial é que o livro trabalha com uma documentação interna. Localizei o acervo do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP), bem como o material da Academia Nacional de Polícia, que treinava os censores. O estudo focaliza a relação dos jornalistas com os censores no Brasil, durante a República e em especial de 1968 a 1988.
Busca-se demonstrar a existência de jornalistas que foram censores federais — e que também foram policiais enquanto jornalistas nas redações. Escrevendo nos jornais, ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso, colaboraram com o sistema autoritário daquele período. Assim como nem todas as redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de resistência ao arbítrio.
Recuo a março de 64 e à legislação censória no período republicano, como por vezes retorno ao início do século 20, demonstrando mais continuidades do que rupturas nesta relação. Centrei a reflexão nos jornalistas de formação e atuação, que trocaram as redações pela burocracia e fizeram parte do DCDP, órgão subordinado ao Ministério da Justiça, cargo de Técnicos de Censura.

Vermelho: Há uma diferença nada desprezível entre apoiar um regime ditatorial e colaborar com ele. Ciente disso, você afirma que a maioria da grande imprensa não só apoiou (o que é público e notório) como também colaborou (o que, por sua vez, não é tão disseminado). De que forma se deu esse vínculo?
BK: Se muitos dos censores eram jornalistas, em uma parte da grande imprensa, no período pós-1968, havia jornalistas que eram policiais. Neste sentido, trata-se de mapear uma experiência de colaboracionismo de uma parcela da imprensa com os órgãos de repressão no pós-AI-5. Tem-se como mote a atuação de alguns setores das comunicações do país e suas estreitas (permissivas) conexões com a ditadura civil-militar do pós-1964.
Além de não fazer frente ao regime e às suas formas violentas de ação, parte da imprensa também apoiou a barbárie. Utilizo esse termo, colaboracionismo, porque compreendo as atitudes tomadas como algo mais que uma adesão aos pressupostos do pós-1964 e principalmente do pós-1968. Além de apoio, também é compromisso — por isso colaborar tornou-se mais acertado do que aderir. Não dá para se eximir. Quem tem mais culpa? É o dono do jornal, é o jornalista? São circunstâncias que se dialogam.
Não estou dizendo que todo jornalista exerceu um papel de colaboração, nem que todas as empresas de jornalismo foram colaboracionistas. Analisei o caso específico de um grande jornal, mas você pode estender para outros casos. Esse termo do colaboracionismo é um termo que dói de ouvir. Isso reflete muito do país, da formação, dos processos econômicos.

Vermelho: Pelos seus cálculos, o Brasil chegou a ter, no máximo, 220 censores — que se ocupavam de fiscalizar a imprensa, as artes, a publicidade, etc. no país inteiro. É pouca gente para tanto trabalho, e uma das soluções da ditadura foi a autocensura. Como esse expediente vigorou durante o regime militar?
BK: Houve jornais que declaradamente optaram por uma posição cínica, defendendo, em 1976, uma “censura inteligente” — feita por pessoal mais bem preparado política e intelectualmente. Constatei, na prática, que os jornais optaram preferencialmente pela autocensura ao encampar as notas da Polícia Federal transmitidas pelo Serviço de Informação do Gabinete (Sibag), vinculado ao gabinete do ministro da Justiça, mas sem registro no organograma dos órgãos federais — portanto, clandestino. A alternativa era a censura prévia.
Os censores estiveram nas redações para cortar os “excessos” em poucos periódicos — O Estado de S. Paulo, Tribuna da Imprensa, O Pasquim, O São Paulo, Opinião, Movimento e Veja. O governo do general Ernesto Geisel, com a promessa de abertura, ainda que “lenta, gradual e segura”, não deixou de estabelecer os parâmetros do que considerava permitido — mesmo que nos bastidores os ministros Golbery do Couto e Silva, da Casa Civil, e Armando Falcão, da Justiça, mantivessem diálogos com jornalistas anunciando a retirada da censura das redações. As notas proibitivas continuaram a ser transmitidas até fins de 1977.
Nos primeiros dias de abril de 1975, o número 300 de O Pasquim trazia o editorial intitulado “Sem censura”, escrito por Millôr Fernandes, notificando ao leitor que desde 24 de março o tablóide se encontrava livre da censura prévia. Depois de um telefonema do Dr. Romão, o último dos quase 30 censores que o jornal teve em cinco anos, estava decretado que a responsabilidade passava a ser da redação.
Para Millôr, a responsabilidade pelo texto impresso que chega às bancas, objurgado ou não, rasurado à caneta vermelha pelo dono do tablóide ou pelo censor do Estado, era sempre da equipe de redação. Por isso o chargista termina o editorial afirmando que ''sem censura não quer dizer com liberdade''. No desenrolar dos acontecimentos, o exemplar de número 300 foi apreendido nas bancas por determinação da Censura Federal — e Millôr Fernandes deixou O Pasquim.

Vermelho: Dá para dizer que boa parte da sociedade apoiava a censura?
BK: Ao se mostrar a censura por dentro, também se tem uma nova série de casos que seriam divertidos se não revelassem uma realidade sombria. Por exemplo, a aparição de um certo Movimento Auxiliar de Recuperação da Juventude Brasileira, que enviou ao Ministério da Educação, em 1972, um apelo para enrijecer a censura. O ministério, por meio de sua Divisão de Segurança e Informações, fez questão de notificar o Serviço de Censura de Diversões Públicas das propostas do grupo.
Ou ainda de um abaixo-assinado enviado em 1970 ao Ministério da Justiça cobrando “medidas governamentais contra o abuso de piadas de mau gosto que estariam sendo feitas sobre portugueses em programas de rádio e televisão”. O secretário particular do ministro da Justiça expediu o abaixo-assinado ao Serviço de Censura — cujo chefe reagiu com a proposta de que seus subordinados vetassem qualquer programa que apresentasse esse risco.

Vermelho: O episódio da “ditabranda” — que expôs o Grupo Folha a um desgaste histórico — ajudou a desmascarar o apoio logístico da empresa à ditadura, especialmente à Oban (Operação Bandeirantes). Dois capítulos de Cães de Guarda tratam do caso Folha da Tarde, que foi chamado até de “Diário Oficial da Oban”. Você poderia resumir como o FT foi entregue às mãos do regime?
BK: A trajetória da Folha da Tarde espelha tanto as rupturas e mudanças no panorama brasileiro, como ainda os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da Manhã para se adaptar aos percalços e à efervescência política daquele período, perdendo poucos anéis, mas jamais os dedos. O corpo de redação da Folha da Tarde, de 1967 a 1984, é formado por dois grupos distintos: os de antes e os de depois do AI-5.
Nas manchetes da Folha da Tarde de 1968, o tom é quase sempre político. Em abril, trazem as torturas sofridas durante oito dias, no Rio, por dois irmãos e cineastas durante a missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, morto no mês de março em um conflito com a Polícia Militar no restaurante estudantil Calabouço, no Rio. Em 2 de outubro, em letras garrafais, o jornal diz: “Conheça Vladimir, ele quer o poder”. No prédio da Alameda Barão de Limeira, a Folha da Tarde ainda noticiou, no dia 13 de dezembro, a libertação de José Dirceu e a transferência de outros estudantes, presos no Congresso da UNE, em Ibiúna, São Paulo, para outras unidades militares e do Dops em todo o país.
Com a decretação do AI-5, muitos proprietários de empresas de jornal criam alternativas para se adaptarem aos “novos tempos”. Na mesma semana que o regime autoritário endureceu, em vários órgãos de imprensa os jornalistas mais combativos foram demitidos. Alguns jornalistas da Folha da Tarde eram simpatizantes da militância armada de esquerda, abrigando reuniões em suas casas, hospedando pessoas ou participando da rede de apoio.
A partir de julho de 1969, com o fim da equipe de redação formada a partir de outubro de 1967, o jornal, torna-se, nas palavras de Cláudio Abramo, sórdido. O papel desempenhado pelo grupo Folha da Manhã durante os anos de 1970 recebe muitas críticas. Acusam-se o jornal e a empresa de algo extremamente sério: de terem sido entregues à repressão como órgãos de propaganda, enquanto papel, tinta e funcionários eram pagos pelo grupo.
Encontrei muitos depoimentos que se auto-atribuíam a criação da célebre frase que definiu a Folha da Tarde a partir de julho de 1969. O jornal era tido como ''o de maior tiragem'', devido ao grande número de policiais que compunham sua redação no pós-AI-5. Muitos também a conheciam, por isso, como ''a delegacia''.
Os jornalistas responsáveis, íntimos do círculo policial repressivo, trocaram intencionalmente a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que corroborassem o ideário autoritário oficial. Certamente, acreditavam em suas ações, compactuando sempre com o poder vigente. A essa atitude se pode dar o nome de autocensura, como também colaboração.
Fiéis aos seus ''donos'', esses cães de guarda farejaram uma brecha, protegeram uma suposta morada e, principalmente, ao defender o castelo, venderam à sociedade uma imagem errônea. Quando o ''tabuleiro do poder'' modificou-se, muitos desses servidores foram aposentados, outros construíram para si uma imagem positiva e até mesmo heróica, distanciando-se do que haviam feito. Outros tantos se readaptaram e estão na mídia como sempre.
De todos esses esquemas e estruturas para perder poucos anéis, algo deve ser sublinhado. O jornal, impresso ou televisionado, é um produto que vende um serviço, a informação, comprada pelos leitores. Assim, muitos pagaram pelo jornal impresso para saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso no jornal, mesmo que no dia seguinte este tenha virado simples papel de embrulho de peixe nas feiras.

Vermelho: Que eu saiba, a Folha jamais reconheceu — e resiste a abordar — seu colaboracionismo. Você acredita que, com novas revelações e denúncias, a família Frias poderá mudar de estratégia e se retratar publicamente?
BK: Não creio.
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Que esperar de uma mídia que não nasceu para todos?


A grande mídia vive uma era de desolação. Ao mesmo tempo em que a audiência e o prestígio da toda-poderosa TV Globo não param de despencar, a Folha de S.Paulo atravessa a maior crise de credibilidade de sua história. Para o jornalista Rodrigo Vianna, da TV Record e do blog Escrevinhador, não é o caso de falar em “ilusões perdidas”. Errado mesmo, diz ele, é pensar em nutrir expectativas com os grandes veículos de comunicação.


“Historicamente, desde pelo menos a Revolução Francesa, os jornais são partidários — e, na verdade, nunca deixaram de estar acima das facções. Por que, então, cobrar que a mídia não seja aquilo que ela nasceu para ser?”, questionou ele, sábado passado (18), no Memorial da Resistência, em São Paulo. Ao lado do jornalista Alípio Freire e da historiadora Beatriz Kushnir, Vianna debateu o tema “O papel da mídia na democracia e durante a ditadura militar”.

À frente deles, num auditório lotado, cerca de 150 participantes acompanhavam o evento, promovido pelo Memorial em parceria com o Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. Estavam lá, em maior número, vítimas do regime militar (1964-1985) e familiares, bem como jornalistas e artistas que combateram a ditadura. Mas também havia muitos jovens — em geral estudantes e jornalistas da novíssima geração. “Num sábado de feriado prolongado, eu jamais esperaria tanta gente”, admitiu Rodrigo Vianna ao público.

Na introdução ao debate, Alípio Freire, editor do Brasil de Fato, disse que a origem colonial do país determinou a falta de democratização da mídia. “A Coroa portuguesa impôs não só o monopólio da terra, do comércio — mas também o monopólio das comunicações. A voz do trono — a voz do poder — era a que podia se pronunciar, e quem ousasse imprimir à margem disso poderia ser preso”. Em 201 anos de imprensa no Brasil, “nunca houve mídia popular capaz de concorrer com a mídia comercial”.

Segundo Alípio, a mesma mídia que se diz democrática e pluralista disputa a hegemonia até no interior do PT, abrindo espaço a petistas “menos danosos”, que concordem em fazer acordos. O custo dessa aproximação foi alto, sobretudo para políticos que ganharam mais visibilidade durante o governo Lula, como os ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci. “Destruíram duas lideranças do PT que poderiam acenar a ser sucessores do Lula”, diz Alípio. “É tolice achar que a mídia destruiu o Palocci e o Dirceu por razões éticas e morais. Foi assassinato.”

Apoio e colaboração

As relações entre grande mídia e ditadura militar foram dissecadas por Beatriz Kushnir, autora do arrasador Cães de Guarda — Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1989. Beatriz usa frases curtas e reveladoras: “A maioria da grande imprensa colaborou com o regime”; “Quando digo ‘colaborou’, quero dizer que foi mais que um pacto. Eles se engajaram mesmo”. “A Folha apoiou em 1964 e colaborou a partir de 1968”.

De acordo com a historiadora, cada órgão da grande mídia lidou com a censura à sua maneira. “Dos anos 50 a 1988, o Brasil teve no máximo uns 220 censores, que precisavam percorrer o país inteiro e checar jornais, revistas, as artes, a propaganda. Como não foi possível dar conta de tudo, veio a autocensura”. Amedrontada com a propaganda anticomunista, parte da sociedade mandava cartas ao Ministério da Justiça para cobrar mais rigor na censura.

O Jornal do Brasil, no esquema “corte você”, orientava os repórteres a se adiantarem ao risco de censura. A Globo contratou censores aposentados, que passaram a instruir os profissionais da rede. A Abril foi mais longe: seus funcionários iam a Brasília e davam aulas de jornalismo aos censores. Data desse período uma extensa troca de correspondências entre o diretor-fundador da Abril, Victor Civita, e a diretoria da Polícia Federal.

Nenhum exemplo de cooptação se equipara ao colaborionismo do Grupo Folha — a empresa administrada, à época, por Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira. Até 1969, a redação da Folha da Tarde, sob o comando de Jorge Miranda Jordão, ex-Última Hora, era dominada por jornalistas ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighela. De jornal à esquerda — que concorreu brevemente com o Jornal da Tarde, do Grupo Estado —, a FT se transforma no “diário oficial da Operação Bandeirasntes”, a então recém-criada Oban.

O periódico tinha como editor-chefe Antônio Aggio Jr., indicado por Caldeira e especializado em jornalismo policial. “Aggio veio de Santos e trouxe dois companheiros — um deles com forte influência nas forças de repressão”, afirma Beatriz. O diário da família Frias estava tomado de policiais. Um jornalista da editoria de “Mundo” trabalhava de manhã no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e à tarde no jornal. Muitos andavam armados na redação, segundo a autora de Cães de Guarda. “O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca.”

Com acesso privilegiado ao poder, a Folha da Tarde dava “as notas mais bem escritas e detalhadas sobre mortes” nos porões do regime. A manchete “Morto o assassino do industrial Boilesen”, de 17 de abril de 1971, é exemplo de cooperação. O metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas, conhecido como Roque, foi morto primeiro na capa da FT e apenas horas depois no DOI-Codi. O jornal, tal como o conjunto da grande imprensa, ainda chancelou a mentira de que Roque fora vítima de uma troca de tiros na Avenida do Cursino.

Das dez pessoas que pediram a palavra durante o debate no Memorial da Resistência, três disseram ter sido conduzidas à tortura em peruas do Grupo Folha. O jornalista e ex-preso político Rui Veiga apresentou uma denúncia ainda mais grave: “Um repórter da Folha acompanhou meu transporte da Oban até o Dops e me aconselhou a não esconder nada — a colaborar com o regime”.

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