quinta-feira, 22 de março de 2007

Canta essa aí pra mim

Beatriz Kushnir
Jornal do Brasil – Caderno B, Chico Buarque, 60 anos, 13/6/2004, p. B5.
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
(Apesar de você, Chico Buarque)
Por definição, o censor é o que pratica o ato censório, o crítico, o julgador, o funcionário público encarregado da revisão e dos cortes de obras literárias e artísticas, ou do exame dos meios de comunicação de massa (jornais, rádio, TV etc.). O seu papel também é apreendido como o de defensor, guardião, vigilante e zelador. No Brasil, de fins da década de 1980, percebeu-se como é difícil para alguns abrir mão desse “síndico” da moral e dos bons costumes. Para muitos o censor tem de ser personificado pelo Estado, senão não há serventia e eficácia. E esses muitos que desejam a continuidade da censura estavam tanto no aparelho de governo como na sociedade civil. É do pacto entre esses dois pólos que a necessidade e materialidade desse “defensor” se concretizou antes e se manteve por tanto tempo.
O fim da censura, decretado pela Constituição de 1988, não necessariamente refle o término dessa combinação. Já que o acordo, camaleonicamente se adaptou, e o ato censório se enquadrou. Mesmo sendo um serviço que demonstrou sua precariedade burocrática, pelo pouco número de censores frente ao volume de trabalho, só quatro anos depois da instauração da censura prévia, em 1970, é que se realizou o primeiro concurso para técnico de Censura. Justamente no governo Geisel, que pregava a abertura política e o fim da censura.
Existiu cerca de trezentos censores em todo o país, cujo perfil pode ser erroneamente percebido como apenas masculino. Todos eram funcionários concursados, policiais federais vinculados ao Departamento de Polícia Federal (DPF) e subordinados ao Ministério da Justiça. E para ser censor, dever-se-ia ser brasileiro; ter 18 anos completos; estar quite com as obrigações militares; estar em gozo dos direitos políticos; ter procedimento irrepreensível; apresentar diploma de conclusão de curso superior (Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Pedagogia ou Psicologia); passar no concurso; e ser aprovado no teste psicotécnico e no exame médico.
Figuras edificadas como chistosas, sublinhando uma falta de preparo cultural para o cargo, os censores, durante o processo de Abertura política, perceberam a marca da pecha que adquiriram. Assim, quando, em fevereiro de 1989, se estabeleceu a extinção do cargo de censor, cerca de 220 técnicos de Censura ainda estavam na ativa, espalhados por todos os cantos do país. Do dia para a noite, não tinham mais função nem espaço físico nos prédios do DPF. “Sentamos nos corredores”, lembra-se Carolina – censora carioca desde 1972, aposentada em 1995. Onde realocar esses funcionários federais era uma demanda a ser respondia.
Carolina, que atuou no Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Rio de Janeiro, contudo, tem certeza de que na letra Jorge Maravilha, os versos “você não gosta de mim, mas sua filha gosta” são uma mensagem aos censores. Já a censora Margarida rememorou que ao receberem as letras das músicas, ela e seu colegas de ofício cantavam alto uns para os outros tentando advinhar qualquer segunda intenção Meio improvisado e com pouca estrutura, a prática na Censura era a seguinte: ao chegar uma letra de autoria de Chico Buarque, os censores carimbavam como interditada.
Para driblar esse esquema, iniciado a partir da gravação de Apesar de você, interpretada pelas autoridades como uma ofensa ao presidente Médici, e depois de se ver cerceado pelas proibições a Calabar, o compositor cunhou um heterônimo batizado de Julinho da Adelaide, filho da favelada Adelaide de Oliveira. A estratégia deu resultado e músicas como Acorda amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro passaram sem grandes problemas pelo “pente-fino”, como também o livro Fazenda-modelo, recebido com reservas por parte da crítica. A ousadia continuou e Julinho da Adelaide concedeu, em setembro de 1974, uma entrevista ao jornalista Mário Prata, publicada no Última Hora.
De forma carimbada e oficial, foi só em 1/4/1975, que o chefe do Serviço de Censura na Guanabara, Wilson Queiroz Garcia, notificou internamente aos órgãos de Censura que Chico Buarque de Holanda estava sob censura. Cinco anos depois, no início de janeiro de 1980, o recém instalado e de pouca duração, Conselho Superior de Censura (CSC) findava uma proibição de quase uma década. Os maiores de 14 anos já poderiam assistir, sem cortes, ao musical Calabar, cinco vezes proibido pelo general Antônio Bandeira, diretor-geral do DPF nos anos 1970.
O medo de que Brasília – personificado na figura de Bandeira – não gostasse de qualquer liberação aterrorizava os censores. O jornalista Raimundo Pereira, na época no Opinião, lembrou que “um funcionário da censura do Rio [ameaçou] impedir a saída de uma edição do [jornal] porque nós havíamos acrescentado o nome do Secretário Geral da ONU, Kurt Waldheim, a [um] trecho de uma matéria já censurada em Brasília. A justificativa do censor foi a de que a censura ao jornal foi deslocada para a agência de Brasília, porque os superiores não gostavam do modo que esta era realizada no Rio, tida como muito flexível. De forma cabal, o censor inquiriu: “vocês não vivem reclamando que eles cortam o nome do Chico Buarque da autoria de uma música? Como vou lá saber se os homens lá em cima não têm implicância com esse tal de Kurt Waldheim?”
Bem distante deste paradoxo, o final da década de 1980 impõe um outro desenho a questão. Os censores, entretanto, não esperaram que alguém definisse o término de suas atividades. Antes que o “enfim, acabou” fosse decretado e que, como uma corporação, perdessem alguma vantagem funcional, resolveram agir. O objetivo desse grupo era manter o DCDP subordinado ao DPF contra a vontade do penúltimo chefe da Censura e censor de carreira, Coriolano Loyola de Cabral Fagundes. Ou, caso o órgão controlador da censura deixasse de existir, que eles permanecessem funcionários do DPF.
O temor era que perdessem as vantagens financeiras que a função lhes garantia. Já que, o censor federal não era apenas funcionário público. Como policial federal, possui um status comparável aos funcionários da Receita Federal e do Corpo Diplomático, e a perda de gratificações pela função policial poderia reduzir à metade os seus salários: Cz$ 18 mil em média podendo chegar até Cz$ 40 mil juízo ou fora dele, para a defesa dos direitos e interesses gerais da classe, quer sejam eles coletivos ou individuais”. Uma resposta às novas diretrizes e pessoas que comandavam o Serviço de Censura a partir da Nova República.
Quatro meses depois, em janeiro de 1987, a primeira vitória da “linha dura” da Censura: Coriolano Fagundes foi exonerado e, assim, recebiam o apoio do diretor-geral da PF, Romeu Tuma, e do ministro da Justiça, Paulo Brossard. Buscando garantir, pela lei e pelo lobby político, sua manutenção dentro do máscara negra, o prédio sede do DPF, o último diretor da DCDP, o censor de carreira Eustáquio Mesquita, declarava que “ser censor nos realiza”.
O primeiro presidente da Anacen, o censor Arésio Teixeira, era vinculado a “dona da tesoura” do Serviço de Censura em São Paulo, quando Armando Falcão foi ministro da Justiça do governo Geisel, e diretora de Censura de 1981 a 1985, na gestão do ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, no governo do general João Figueiredo.
Solange Hernandez, a Solange Tesourinha, era a legítima representante da “linha dura” e a frente do DCDP, desaprovou 2.517 letras de música, 173 filmes inteiros, 42 peças de teatro e 87 capítulos de novelas. Imaginada de maneira jocosa pelo músico Leo Jaime, a censora tornou-se o símbolo de uma interdição estatal conservadora, arcaica e, principalmente, violenta. Tesourinha e seu grupo demonstraram-se fortes, influentes e poderosos mesmo com a extinção de seus cargos e funções. Suas estratégias de articulações garantiram-lhes poder.
Uma explicação possível para essa eficácia está nos versos de Leo Jaime na música Solange. Demonstrando o espírito de uma cultura política intervencionista e autoritária, interiorizada na mentalidade de uma boa parte da população que dizia “não” aos queriam suprimir o “não”. Como um grito para romper as camadas de tantas negativas, o cantor esbraveja

Eu tinha tanto pra te dizer
Metade eu tive que esquecer
E, quando eu tento escrever,
Sua imagem vem me interromper
(...)
Eu penso que vai tudo bem
E você vem me reprovar
(...)
Seu nome está em cada lugar
(...)
Você é bem capaz de achar
Que o que eu mais gosto de fazer
Talvez só dê pra liberar
Com cortes pra depois do altar
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Nota:[1] Em janeiro de 1987, o salário mínimo valia Cz$ 964,80 (novecentos e sessenta e quatro cruzados e oitenta centavos). Os censores, portanto, recebiam de 18,65 a 41,45 salários mínimos. Atualmente ninguém pode ganhar mais que o presidente da República, que recebe um pouco mais R$ 12 mil (doze mil reais). Alguns censores que entrevistei esbravejaram. Poderiam ter salários (na ativa ou aposentados) de até R$ 20 mil (vinte mil reais), cerca de 111 vezes o salário mínimo, que, em outubro de 2001, era de R$ 180,00. Mas tinham de se contentar com o teto máximo permitido.

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